Por Igor Pereira
Estou aqui na minha prateleira com o livro de Darcy Ribeiro me olhando. Tenho uma piada interna sobre Darcy. Virou um certo clichê que me irrita citar Darcy Ribeiro quando a esquerda perde alguma eleição. Eu perdi, mas detestaria estar do lado daqueles que me venceram. Acho isso de última. É um desrespeito com Darcy. Ele não chancelaria uma postura orgulhosa de ser derrotado. Pelo menos não consigo enxergá-lo dessa forma.
Mas voltando ao livro. É um exemplar que ganhei em 2010 de um casal de amigos, o Maurício e a Anita. Eles escreveram na dedicatória carinhosa que Darcy era um obstinado por seus projetos e que eu tinha essa mesma inquietação. Desejavam que eu fosse adiante nas ideias apresentadas na obra. Evidentemente eram palavras carinhosas de grandes amigos, que muitas vezes nos enxergam de uma maneira idealizada. Quem dera eu fosse essa pessoa que eles retrataram, alguém capaz de ir adiante nas formulações de Darcy Ribeiro escritas em “O povo brasileiro”.
Mas hoje, passados quinze anos dessa dedicatória, peguei o exemplar empoeirado na minha prateleira nesta tarde de férias aqui no fim do fundo do nosso Brasil sulino. Brasil sulino, essa mistura de gaúchos, matutos, gringos e negros. Acaba de me ocorrer essa ideia e pergunta: O que diria Darcy Ribeiro dessa interpretação do Brasil dada por Jessé em “Pobre de direita”?
Leio o último parágrafo do último capítulo de “O povo brasileiro”. Que visão linda sobre nós tem esse autor! Ele previu nosso destino nacional radiante. Que estaríamos vivendo as dores do parto de uma gloriosa nação. Depois de descrever as dores desse parto e os confrontos a enfrentar, ele olha para o horizonte e enxerga:
Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo também pelo domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.
Onde foi parar a nação mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas? Olhamos em volta, e vemos o oposto disso. Jessé nos demonstra outro Brasil, onde o medo e o ódio espalham a mesquinharia e a sordidez. Jessé fala do racismo, mas Darcy também falou. Evidenciou o poderio do fazendeiro como uma força opressora e racista. E de certa forma previu Lula quando disse que a única saída possível seria a expansão do movimento operário. Ao ver a urbanização e industrialização do Brasil, se animou com a novidade. “Nas cidades, ao contrário da roça, o operário sindicalizado já atua como um lutador livre diante do patrão, chegando a ser arrogante na apresentação de suas reivindicações”, disse ele no capítulo em que fala de classe, cor e preconceito.
Lula surgiu e confirmou as teses de Ribeiro. A petulância da classe trabalhadora produziu o governo Lula. Mas porque o restante da profecia não se concretizou? Vejamos algumas pistas. Darcy nos adverte que a democracia racial que ele previra só seria possível com democracia social. Ele falou de um orgulho multirracial como antídoto contra as tensões sociais decorrentes da ascenção do negro. Ele já anteviu os gérmens das posturas intolerantes caracteristicamente racistas advindas de “grupos privilegiados predominantemente brancoides ou tendentes a identificar sua cor cobriça por uma ancestralidade antes indígena do que negra”.
Acreditava na disseminação de um orgulho brasileiro por sua origem multirracial como forma de enfrentar e superar “um dos conflitos mais dramáticos que desgarra a solidariedade dos brasileiros”. O que Jessé identifica é justamente a corrosão dessa solidariedade, mas não necessariamente porque haja uma efetiva ascenção do negro. Ainda que pontualmente isso ocorra com tímidas políticas reparatórias em reserva de vagas nas universidades, o panorama geral social de uma sociedade financeirizada, desindustrializada é de precarização do mundo do trabalho, que afeta os negros, mas também os brancos pobres.
Tal antídoto não viria de ideias abstratas que brotariam espontaneamente. Darcy, diferente do que parece com Jessé, era profundamente apegado às estruturas econômicas da sociedade. Ele identificava o monopólio da terra como um entrave a essa democracia racial, bem como a “imposição de formas arcaicas e renovadas de contingenciamento da população ao papel de força de trabalho superexplorada”. Tais obstáculos precisariam ser removidos do caminho com muito trabalho de um governo dotado de um projeto nacional. Ele não tinha nenhuma confiança na elite do país de seu tempo. Defendia a necessidade de profundas transformações na estrutura de poder. O propósito de sua obra era servir como inspiração para “intervir eficazmente na história a fim de reverter sua tendência secular”. Sendo assim, a previsão solar do destino nacional radiante não brotaria espontaneamente. Seria um propósito pelo qual deveríamos trabalhar enquanto Nação para alcançar. Evidentemente tivemos contratempos. Não digo que falhamos, porque acho que a história não acabou. Cinco séculos são muito pouco tempo para uma Nação. Mas é importante sublinhar que estamos muito longe da nova Roma generosa sonhada por Darcy.
A obra de Jessé talvez seja o pesadelo de Darcy. A tormenta antes da bonança. O Brasil em convulsão a ocultar a Nação capaz de abrigar as múltiplas humanidades que aqui se instalaram. O problema continua sendo a elite. O poderio das fazendas, as renovadas formas de contigenciamento da população ao papel de força de trabalho superexplorado. Tudo isso continua presente no Brasil de hoje. O grito de liberdade ainda não saiu do peito. Darcy não foi simplesmente um brilhante intérprete do Brasil.
Ele foi um político, na mais elevada acepção que essa palavra encerra. Foi exilado do Brasil após um Golpe Militar que atendeu a interesses dos Estados Unidos e de uma elite que dela foi cupincha. As tarefas que Darcy nos propõe, que ele mesmo não conseguiu cumprir porque foi derrotado (mas detestaria estar do lado do que os venceram) permanecem inconclusas. Ele sempre negou os intérpretes do Brasil que viam no brasileiro atributos morais a determinar nosso atraso.
Talvez aí resida a maior pista do que acharia das formulações de Jessé Souza sobre ressentimento dos bastardos. Para ele, não estava na nossa suposta preguiça, ou indisciplina ou qualquer outro vício moral as causas de nosso atraso. O que ele identificava como ruim aqui era “o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus”. Ora, não é o que ocorre hoje? Não é exatamente isso que Jessé argumenta que não foi explicado aos ressentidos, que não conhecem as verdadeiras causas de seu sofrimento e se voltam contra seus irmãos de infortúnio? A passagem a seguir foi escrita no século passado, mas permanece hoje talvez mais atual do que quando formulada:
Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade. O que há e o que houve é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.
Ainda somos o que Darcy enxergava, um povo em ser, ainda impedido de sê-lo. É essa barreira que Jessé identifica como racismo ou viralatismo. E talvez por não saber exatamente o que somos, ou por vergonha ainda daquilo que somos, continuamos nos estranhando, nos odiando. Nós ainda nos enxergamos ou somos enxergados como essa massa de nativos afundados na mestiçagem e sem consciência de nós. Ninguéns. Na dura busca de nosso destino. A romanidade que Darcy enxergava em nós muito melhor que a velha Roma, porque lavada e maturada no sofrimento indígena e negro.
Continua valendo o nosso patrimônio de falarmos uma mesma língua, e não termos guerras separatistas. Mas não é essa divisão do Brasil entre Norte e Sul uma conflagração pré-separatista? Não é justamente esse clima de ódio o que nos impede de buscar um destino nacional comum? Que nos impede de olhar para o futuro com o peito esperançoso?
É justamente quando as esperanças falham, é que devemos reinventá-las. Qual a virtude se opõe ao ressentimento? Tratemos de encontrá-la. Esse revolto e turbulento mar do século XXI haverá de nos conduzir a um novo tempo. Precisamos saber imaginar um futuro.
Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da direção estadual da CTB do Rio Grande do Sul.
Leônidas
Excelentes reflexões Igor. Saudações Geográficas.