PUBLICADO EM 11 de nov de 2025

O filme que Reagan não entendeu: Um Retrato da Mulher Soviética

“Moscou não acredita em lagrimas” é um filme soviético sobre uma mãe solteira que conquistou o Oscar e confundiu um presidente estadunidense. Quatro décadas depois, ele tem mais a dizer sobre nossos relacionamentos do que a maioria dos aplicativos de namoro.

a Mulher Soviética foi retratada em 'Moscou Não Acredita em Lágrimas'

A Mulher Soviética foi retratada em ‘Moscou Não Acredita em Lágrimas’

O cineasta russo Vladimir Menshov ficou mundialmente conhecido por dirigir o longa-metragem Moscou Não Acredita em Lágrimas, que em 1981 foi agraciado com um Oscar de melhor filme estrangeiro. A façanha é incomum para a União Soviética, que teria levado apenas mais uma estatueta ao longo de toda a Guerra Fria. O filme virou uma obsessão para o presidente dos EUA, Ronald Reagan, que teria assistido oito vezes o melodrama cult soviético, declarando não ter entendido nada, segundo conta o portal Janela para a Rússia.

Mas, afinal, o que há de especial nesse filme para, em meio à vigência do socialismo soviético, ter conseguido conquistar a academia de cinema de Hollywood?

Com o objetivo de não estragar a experiência de quem quer assistir a esse filme, disponível gratuitamente na plataforma YouTube, vou abordar algumas das discussões que o cineasta soviético traz sobre os conflitos para a emancipação de uma mulher trabalhadora em meio a uma sociedade socialista.

O enredo nos leva a uma Moscou de 1958 para conhecer a história de três mulheres que são jovens, vindas do interior e estão alojadas numa espécie de casa do estudante, onde buscam uma formação e colocação no mundo do trabalho e no mundo sentimental. A trama acontece a partir do olhar dessas três mulheres e amigas: a divertidamente mentirosa Ludmila (Irina Muravyova), a tímida e sonhadora Tonia (Raisa Ryazanova) e a idealista e dedicada Katia (Vera Alentova), que percebemos como a protagonista dessa narrativa, que ocorre em duas partes.

Katya ambiciona uma vida mais digna por meio do estudo e do trabalho na cidade de Moscou. A vemos já no início do filme se lamentando por não ter conseguido passar no exame de seleção para a faculdade de Engenharia por míseros dois pontos e ser consolada pela amiga Ludmila. Em seguida, ela se envolve nas tramas da amiga e acaba se apaixonando pelo operador de câmera Rudolf (Yuri Vasiliev). Ao descobrir que ela se trata de uma simples operária de fábrica, Rudolf a abandona grávida. Um abandono não só romântico, mas também de classe, motivado pela rejeição ao fato dela ser uma operária.

A primeira parte do filme se encerra com Katya assumindo os cuidados sozinha de sua filha, a quem nomeia Aleksandra, nome celebrado durante boa parte do filme através da belíssima canção “Aleksandra”, de Tatyana e Sergey Nikitin. Aliás, vale destacar que o filme soviético também traz na trilha a música Besame mucho, um clássico da compositora mexicana Consuelo Velazquez, o que certamente contribuiu para aumentar a simpatia ocidental por essa película da distante União Soviética.

Emancipação com Apoio Estatal: A Vitória de Katya para Além do Individual

Então, nós temos aqui um tema que é muito conhecido em nossa realidade: o de uma mãe solteira que precisa conciliar trabalho e estudo. Sabemos que esse é um problema muito comum na nossa realidade e sabemos também que, nessas condições, as mulheres têm dificuldades para se inserir no mercado de trabalho.

No contexto desta obra socialista, a segunda parte avança cronologicamente vinte anos, apresentando Katya como diretora de fábrica e sua filha Aleksandra já uma jovem adulta prestes a ingressar no ensino superior. Apesar de ter passado pela dura condição de criar Aleksandra sozinha, ela conseguiu estudar engenharia, como era seu sonho na casa do estudante, e ascender a um cargo de liderança no mesmo local onde começara como uma simples operária.

São várias camadas aqui, mas se percebe essa demonstração de que o socialismo se preocupava com a emancipação das mulheres nesse sentido. Atenção especial merece a casa de estudante da narrativa: diferente de parte significtiva das moradias estudantis brasileiras, é um espaço residencial não-ligado a uma Universidade, que abriga jovens trabalhadoras em busca de formação e inserção profissional, seja em nível universitário ou não. Fica a curiosidade de pesquisar como essas residências de fato funcionavam à época.

Contra a epidemia da solidão: Big techs x políticas públicas

Ao longo dessa segunda parte, o papel do Estado socialista fica bem nítido, como, por exemplo, na situação em que Katia participa de uma reunião onde é solicitado seu apoio para um clube cujo objetivo é ser uma espécie de Tinder estatal, ou seja, um lugar onde homens e mulheres solteiros vão para encontrar um relacionamento.

A promotora do clube argumenta com Katya que a urbanização teria inibido a capacidade de homens e mulheres de ter a iniciativa de se conhecer, e esse é um tema muito presente e contemporâneo. Afinal, se fala hoje em dia da epidemia de solidão das grandes cidades, em que homens e mulheres se queixam de não conseguir encontrar alguém para se relacionar.

A diferença é que hoje não existe uma iniciativa estatal para incidir sobre essa questão. Uma vez que o Ministério do Namoro, anunciado em tom de brincadeira pelo Presidente Lula, não foi criado, as iniciativas para unir as pessoas partem das big techs privadas, que desenvolvem aplicativos com a promessa de entregar esse par perfeito, mas as queixas e insatisfações não param de aumentar, não é mesmo?

Voltando ao filme, a solidão era um drama vivido pela personagem principal, que havia conquistado seu lugar no mundo do trabalho, mas não no mundo dos relacionamentos amorosos. Algo também bastante contemporâneo.

“Farinha Pouca, Meu Pirão Primeiro”: A Lógica da Escassez que divide homens e mulheres

Para não contar o filme, limito-me a dizer que as experiências de Katya e suas amigas nos convidam a refletir sobre os relacionamentos diante da ascensão profissional feminina. Qual é o papel do homem quando ele não é o provedor? Esse é um tema quente hoje em dia.

O filme explora essa questão, tendo sido feito há quarenta e seis anos, demonstrando o pioneirismo do socialismo soviético ao trazer esse debate. Vendo-o, fiquei com a impressão de que se torna muito mais fácil vencer o machismo quando não há o fenômeno do risco da exclusão. Explicando melhor: nenhum dos personagens do filme é confrontado com uma disputa por vagas escassas de emprego que colocam homens e mulheres em uma arena em que há menos vagas do que concorrentes.

O longa, portanto, constrói essa dinâmica sobre um alicerce crucial: o da abundância de oportunidades. O contexto soviético retratado é o de uma sociedade industrial com emprego estável, direitos trabalhistas robustos e bem-estar social. Nesse ambiente, a segurança econômica dilui o medo. Para um homem, aceitar a liderança de uma mulher deixa de ser uma ameaça existencial quando seu próprio sustento e valor social não estão em jogo. Ele pode ser um operário do chão de fábrica e se sentir valorizado, sem ver na colega promovida uma rival na luta por recursos escassos.

O personagem Gocha (Aleksey Batalov) declara sua opção por não liderar e ser um bom operário, elogiado em sua função por seus amigos e colegas de trabalho. Fica explícita a satisfação dele em “fazer funcionar coisas que sem ele não estavam funcionando”, e isso para ele é suficiente para sua realização pessoal.

A realidade contemporânea, marcada pela precarização e desregulamentação, é o oposto completo. Aqui, vigora a lei da ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’. Em um cenário de insegurança, a conquista profissional de uma mulher pode ser percebida — mesmo que subliminarmente — como uma ameaça à oportunidade de um homem. O que poderia ser uma parceria se transforma em um campo minado de desconfiança mútua, onde a necessária cooperação é sufocada pela competição. Mas é só uma perspectiva, que trago para o debate e a contribuição de quem lê.

Assistir a Moscou Não Acredita em Lágrimas hoje é, portanto, um exercício duplo: de arqueologia de uma utopia política que deixa lições apesar de ter sofrido uma derrota histórica, mas também de um espelho surpreendentemente claro dos nossos próprios dilemas íntimos em uma (dis)topia de mercado que anuncia, após décadas de suposto triunfo, aparentemente seu declínio incontornável.

Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmenté é vice Pró-Reitor de Assuntos Estudantis da UFRGS.

Assista aqui ao filme (com legendas em português)

Banner


COLUNISTAS

QUENTINHAS