PUBLICADO EM 19 de jun de 2024

Chico Buarque chega aos 80 anos digno de uma reverência raríssima

Por André Cintra

Chico Buarque recebe Prêmio Camões, no Palácio de Queluz, Portugal. Foto: Ricardo Stuckert/PR

Chico Buarque recebe Prêmio Camões, no Palácio de Queluz, Portugal. Foto: Ricardo Stuckert/PR

Francisco Buarque de Hollanda faz anos, mas o azar não é só dele. Ao completar 80 anos nesta quarta-feira (19), o mais renomado dos compositores brasileiros é alvo de diversas homenagens, sim – mas também da longeva rabugice da grande mídia brasileira.

Na Folha de S.Paulo, Gustavo Alonso se presta a escrever sobre “o lado B de Chico Buarque”, já que “o lado A (…) todos conhecem”. Segundo o colunista, há muitos “pontos tortuosos da vida de Chico” – “vacilos que não podem ser glamourizados”. Um dos “paradoxos” é o fato de Chico ter apoiado o então peemedebista Miro Teixeira nas eleições para o governo do Rio de Janeiro em 1982. Tenha dó!

Um dia depois de Alonso, Sidney Molina também usa a Folha para relativizar o prestígio do aniversariante octogenário. Seu texto faz justiça a Chico ao pontuar que, além de grande letrista, se trata de um compositor com “personalidade musical sofisticada”. Mas peca ao frisar que uma “unanimidade nacional nos anos 60 e 70” passou a ter “um público mais restrito nas últimas décadas”. Sua tese é precisamente a seguinte:

“Até então ouvida em todos os rádios, a voz de Chico Buarque, responsável pela educação sentimental de todo um país e também pela vocalização da resistência política, passaria, pouco a pouco, a ser escutada apenas por seu próprio público. Quando rumava para a maturidade artística, o compositor deixaria de ter suas letras gigantescas e melodias marcantes aprendidas de memória e cantadas por gente de todas as idades e classes sociais.”

Pobre Chico – e pobre de nós, leitores. Chico nunca foi uma “unanimidade” com músicas tocadas “em todos os rádios”, nem tampouco está circunscrito hoje a “seu próprio público”. Mesmo no auge dos grandes festivais de música, na década de 1960, emissoras como Excelsior, Record e Globo chegavam a, no máximo, duas capitais do Nordeste.

Além disso, que diabo de “unanimidade” é esta que, em pleno apogeu, recebeu a maior vaia do mundo, ao disputar o 3º Festival Internacional da Canção em 1968? A bela e melancólica Sabiá – que tinha letra de Chico e música de Tom Jobim – cometeu o crime de vencer Pra não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. À luz da História, as imagens de um Chico intimidado e constrangido com as vaias depõem mais contra o público. Mas unanimidade, enfim, não havia.

Da mesma maneira, Chico Buarque segue digno de uma reverência raríssima para artistas vivos que estão há quase 60 anos na ativa. Sua criação – que vai da música à literatura, passando pelo teatro – continua a ganhar versões pelas mãos de outros autores e recriadores.

É pouco comentada – mas digna de nota – sua relação com o cinema, iniciada aos 22 anos, quando Chico compôs uma música instrumental para o filme O Anjo Assassino (1966), de Dionísio Azevedo. Foi a primeira de dezenas de contribuições para longas de ficção ou documentários. De resto, três de seus romances – EstorvoBenjamim e Budapeste – foram adaptadas para o cinema, assim como a peça Ópera do Malandro.

Se lhe falta uma biografia à altura, sobram livros e ensaios sobre sua obra. Só nestas semanas, foram lançados quatro, com destaque para Trocando em Miúdos – Seis Vezes Chico, de Tom Cardoso. O autor defende que “a política só fez mal ao Chico artista”, a ponto de o compositor preterir ou quase renegar algumas de suas canções mais engajadas.

Exageros à parte, Chico hesitou em aceitar o convite de sua gravadora, a Phonogram (atual Universal), para participar do Festival Phono 73, em São Paulo. A empresa queria promover seus contratados, mas esqueceu de combinar com a ditadura. Era 1973. Homens a serviço do regime militar cortaram os microfones de Chico e Gilberto Gil durante a execução de Cálice. Os dois só voltaram a cantar publicamente a música 45 anos depois, no Festival Lula Livre, em 2018.

Chico e Gilberto Gil cantam Cálice, censurada pela ditadura, em 1973.

Chico e Gilberto Gil cantam Cálice, censurada pela ditadura, em 1973.

Apesar de Você – que foi composta em 1970 e nos lembrava de que “amanhã vai ser outro dia” – é mais uma canção praticamente vetada por Chico em seus shows. Ele sempre negou que a ditadura fosse o tema da letra (tal como nega escrever letras autobiográficas), mas de nada adiantou. A lenda se impôs.

A política é visível, sim, no Chico cidadão. Pode-se dizer que sua adesão à Passeata dos Cem Mil, em 1968, no Rio de Janeiro, talvez seja de menor peso, tantos foram os artistas que se envolveram abertamente na manifestação, sendo muitos deles mais famosos e populares à época.

Mas, dos três expoentes máximos da MPB (Música Popular Brasileira), Chico é o único que votou em Lula em todas as eleições presidenciais disputadas pelo petista, diferentemente de Caetano Veloso e Gilberto Gil. No Golpe de 2016, nenhum ídolo se expôs mais do que Chico na defesa de Dilma Rousseff, o que inclui sua presença por horas na galeria do Senado enquanto a ex-presidenta apresentava corajosamente sua defesa.

Chico Buarque com Lula e Dilma em 2022. Foto reproduzida dos redes sociais do deputado José Guimarães.

Chico Buarque com Lula e Dilma em 2022. Foto reproduzida dos redes sociais do deputado José Guimarães.

O músico e professor José Miguel Wisnik, amigo de Chico, já o comparou ao protagonista do conto Um Homem Célebre, de Machado de Assis. De nome Pestana, o personagem é um artista que rejeita suas canções – polcas simples, mas de imenso sucesso popular. Porém, a despeito de um prolongado esforço, Pestana fracassa ao tentar compor músicas clássicas ou mais sofisticadas.

A comparação é injusta, porque Pestana, no afã de buscar algo maior, acaba em ruína e deixa de ser uma celebridade. Já Chico, ao vencer o Prêmio Camões – o mais importante para escritores da língua portuguesa –, provou de vez que o romancista, embora inferior ao músico, não deve nada à produção de seu tempo.

Seja qual for o Chico Buarque que você preferir, entre as tantas facetas do homem público, cabe celebrá-lo pelos 80 anos. Chico foi parte da resistência à ditadura e é parte da reconstrução nacional. Na música, na arte e na política, seu legado é muito mais que uma “alegria fugaz” ou “uma ofegante epidemia”. Viva Chico Buarque!

André Cintra é jornalista

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