Quando a cortina foi levantada, a plateia viu a personagem Liberdade visitando o Brasil. Na peça, ela encontra um escravo, “coberto de andrajos e cicatrizes recentes, entregue à lida diurna”. A Liberdade, então, “invoca o auxílio do céu”. Um anjo mensageiro responde o chamado e devolve o escravo à Liberdade. Além disso, ele também ordena a libertação das crianças escravizadas.
No palco, então, surgem 21 crianças. Nenhuma delas é aspirante a ator mirim. Todas são negras e filhas de escravas. Elas recebem cartas legítimas de alforria.
“A este espetáculo as lágrimas correram e o entusiasmo dos corações sensíveis tocou até o delírio”, escreveu depois o médico José Antonio do Valle Caldre Fião, presidente da Sociedade Partenon Literário, grupo criado há 150 anos, que organizou o espetáculo abolicionista e que fazia “vaquinhas” para comprar a liberdade de escravos.
Mas não só no Rio Grande do Sul atividades de libertação de escravos ocorreram no período. Por todo o Brasil, de 1868 a 1888, há registros de grupos mobilizados pela causa abolicionista. No Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Pernambuco e Espírito Santo, por exemplo, as cartas de alforrias também eram entregues em apresentações culturais com direito a registro na imprensa.
Em 10 de agosto de 1886, Nadina Bulicioff, uma cantora russa, apresentou a opera Aida, de Verdi, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Ao final, “arrebentou suas algemas cenográficas e, diante do público, que de pé afitava lenços, entregou-lhes (a seis escravas) cartas de liberdade”, conta a pesquisadora Angela Alonso, no livro Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (Cia das Letras, 2015). A apresentação carioca foi organizada pelos abolicionistas André Rebouças, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco.
Quanto ao grupo gaúcho Partenon Literário, sua bandeira ia além das letras.
“O Partenon não foi uma sociedade meramente literária, mas de ordem cultural e com viés político. A maioria dos partenonistas tinha dois ideais. Eles defendiam sobretudo a República, sendo contrários à Monarquia vigente, e eram abolicionistas”, explicou Maria Eunice Moreira, professora da Faculdade de Letras da PUCRS à BBC News Brasil.
Juntamente com os pesquisadores Alice Campos Moreira e Mauro Nicola Póvoas, a professora escreveu um estudo que servirá de apresentação a todo o acervo digitalizado da “Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário”. A revista, publicada entre 1869 e 1879, poderá ser acessada pela internet a partir de outubro (o site ainda não divulgado). No periódico também eram publicados textos contra a escravidão, como o registro de Caldre Fião sobre o teatro apresentado no São Pedro.
Atualmente, quem deseja pesquisar todas as 71 edições precisa alternar visitas a diferentes acervos, entre eles o da coleção especial da biblioteca da PUCRS, onde esteve a reportagem.
As revistas eram diminutas para o padrão atual, com menos de vinte centímetros de largura e altura, com somente a capa em papel colorido e raras ilustrações, como nos casos de textos sobre figuras históricas.
‘Ultraje’
A peça teatral de 1869 foi considerada um ultraje por quem defendia a escravidão. Vale lembrar que, no Brasil, a abolição ocorreu 19 anos depois do espetáculo, em 13 de maio de 1888. A Lei do Ventre Livre, que daria liberdade às crianças, também foi posterior à montagem teatral, assinada em 1871. A Lei dos Sexagenários, que libertou os escravos idosos, foi firmada em 1885.
No Rio Grande do Sul, a escravidão foi abolida em 1884, resultado da pressão de diversos grupos, como o Centro Abolicionista e o Partenon Literário.
O livro que contém a ata original da sessão na Câmara de Vereadores da capital gaúcha que acabou com a escravidão no Estado está preservado no Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho, da prefeitura.
Barreiras
Os integrantes do Partenon Literário não organizaram o espetáculo sem encontrar barreiras. Pelo contrário. Se conseguiram libertar as 21 crianças em 19 de setembro foi por que foram impedidos na data originalmente planejada – 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil, declarada em 1822.
“Alguns senhores mal-intencionados especularam. Riu-se com estúpido desdém, e a situação pressentiu um golpe certeiro que lhe dirigíamos. Daí os óbices, as dificuldades com que o Partenon teve que lutar e que retardaram a festa da santa liberdade até o dia 19”, relembrou Caldre Fião. A passagem também está registrada no livro História da Academia Rio-Grandense de Letras (1901-2016) e Parthenon Litterario (1868-1885) (Metamorfose, 2016), de José Carlos Laitano.
Segundo a historiadora Marília Conforto, autora de Escravo de Papel (Educs, 2012) e Faces da Personagem Escrava (Educs, 2001), muitos dos escravos que chegavam ao Rio Grande do Sul vinham pela rota do comércio interno, já que o tráfico internacional era proibido desde 1850. O tráfico passou a ser ilegal por pressão da Inglaterra, que chegou a apreender navios negreiros. Com o desenvolvimento do capitalismo inglês e da consequente industrialização, novos mercados consumidores eram necessários para o comércio dos produtos da Inglaterra.
“Escravo não tinha salário e não consumia”, resumiu criticamente a pesquisadora durante a entrevista.
‘Purgatório dos negros’?
Conforme Conforto, ser vendido com destino ao Rio Grande do Sul era um novo castigo aos escravizados. “Se criou a ideia de que o Estado era o ‘purgatório dos negros’. O negro que se rebelava era o primeiro a ser vendido e mandado para o Rio Grande do Sul. No inverno, as temperaturas eram gélidas, muitas vezes abaixo de zero. Se não ficavam no espaço urbano, como em Porto Alegre, eram mandados para o campo. Lá, trabalhavam nas charqueadas, que exigia manejo de facas afiadas. Eles tinham que matar os bois a pauladas, tirar o couro, cortar, colocar o sal nas chamadas ‘mantas’ de carne, algo muito bruto”, explica a pesquisadora.
Além de Caldre Fião, outro líder do Partenon que teve forte atuação abolicionista foi o professor Apolinário Porto Alegre. O primeiro estudou Medicina no Rio de Janeiro, o segundo, estudou direito em São Paulo. Segundo Conforto, “estudar fora” influenciava os intelectuais que depois retornavam ao Estado trazendo novas ideias influenciados pelos ideais do positivismo europeu, entre eles a liberdade, por exemplo.
Apolinário publicou na revista do Partenon diversas peças de teatro e textos abolicionistas. Uma peça, em especial, foi a mais polêmica e chegou a ser proibida pela polícia. Os Filhos da Desgraça contava a história de amor entre uma senhora e um escravo (o contrário era mais aceito no Brasil colonial). “Com tal temática, Apolinário não poderia colocar a ação em Porto Alegre, porque provocaria a revolta de muitos chefes de família”, explicou o historiador Moacyr Flores, em artigo de 1978, sobre a obra do autor.
Como a ideia de “proximidade” chocava demais os “chefes de família”, o escritor optou por situar a trama em Salvador. “O drama está inserido na filosofia dos abolicionistas que por princípios éticos, além dos econômicos, não admitem a escravidão”, acrescentou Flores sobre a peça.
Apolinário também liderou o projeto de aulas gratuitas noturnas para os pobres e libertos, explica a professora Maria Eunice Moreira, da PUCRS. Ainda de acordo com ela, enquanto ficcionistas, o tema da liberdade interessava os partenonistas de maneira abrangente, incluindo figura do gaúcho cavalgando livre pelos campos, o mítico “centauro dos pampas”, que surge na literatura regionalista do período influenciada pelo Partenon.
Campanha pela liberdade
No mesmo ano em que a escravidão foi abolida no Rio Grande do Sul, em 1884, 15 anos depois da alforria das crianças no teatro, o Partenon Literário fez uma nova campanha de libertação. Os integrantes batiam de porta em porta das casas da região central, especialmente na Rua das Andradas, pedindo a liberdade dos escravos. Com dinheiro arrecadado em ações, compravam alforrias. Os libertos foram reunidos no local que hoje é conhecido como Parque da Redenção, oficialmente chamado de Parque Farroupilha. Próximo dali, montavam barracos na chamada “Colônia Africana”.
Com tamanha movimentação abolicionista, no início do ano seguinte, em janeiro de 1885, a Princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea em 1888, visitou Porto Alegre. A princesa chegou a lançar a pedra fundamental da construção da sede do Partenon, com projeto inspirado no templo de Atenas, o que não se concretizou.
Se não há registro fotográfico da visita de Isabel ou do espetáculo de 19 de setembro de 1869, o Museu Municipal de Porto Alegre Joaquim José Felizardo guarda um verdadeiro tesouro em forma de retratos. São diversos registros fotográficos, alguns de 1868, de escravos e ex-escravos, em Porto Alegre. Quase nenhum dos retratados, porém, está identificado.
Uma das fotografias encontrada pela reportagem, do final do século 19, mostra dois ex-escravos: são duas crianças, uma aparentemente com três anos e outra por volta de dez anos. Elas estão de pés descalços, vestidas, seguram ramalhetes de flores e olham para a câmera de Virgílio Calegari, um fotógrafo italiano que instalou um estúdio na capital gaúcha. Calegari fotografou outros escravos e ex-escravos no seu estúdio, mas era conhecido por fotografar também a alta sociedade porto-alegrense. Além de Calegari, os Irmãos Ferrari também fotografaram escravos libertos no seu estúdio montado na rua Voluntários da Pátria.
Porém, as imagens encontradas de ex-escravos fora de estúdio foram feitas por um fotógrafo amador, que assinava sob o psudônimo de Lunara (das iniciais de Luiz do Nascimento Ramos). Lunara era um comerciante que revelava as fotos em casa. Mesmo amador, chegou a vencer diversos concursos.
Ele registrou cenas bucólicas da capital gaúcha na virada do século. Em 1900, Lunara fotografou um casal de negros libertos, em frente ao seu barraco. A foto está catalogada como “Deixa disso, nhô João”.
“Os abolicionistas não-negros, os abolicionistas brancos, tinham uma visão ligada ao Iluminismo, de humanização. O que dava a possibilidade de uma pessoa negra ser escravizada era sua não-humanização. Até 1850, o código comercial colocava os negros como ‘ser movente’, categoria de coisas que se movem. Estão nessa categoria ate hoje, por óbvio, cavalos, cachorros da polícia militar. Então, a discussão dos abolicionistas era de que negros não eram coisas, mas pessoas”, afirma o especialista em direito público Gleidison Renato Martins, da coordenação nacional do Movimento Negro Unificado.
Martins aponta o paradoxo de a própria “era da razão” ter dado origem a artigos e experiências que tentavam provar a inferioridade dos negros e apontavam os brancos como “raça superior” o que, se sabe, é falso. “Não basta apenas colocar as pessoas nessa outra estrutura sem mudar o pensamento racista e processos de discriminação”, conclui.
Fonte: BBC Brasil