PUBLICADO EM 23 de nov de 2020
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A pandemia expôs as falhas fundamentais do livre mercado

Enquanto os casos de COVID-19 disparam novamente, os hospitais continuam com funcionários insuficientes e os Equipamentos de Proteção Individual e ventiladores ainda estão em falta, nós não podemos deixar as necessidades básicas das pessoas aos caprichos dos atores que buscam lucro – precisamos de um planejamento democrático.

Foto: reprodução de vídeo que hospital de Nova York sobrecarregado com pacientes COVID-19.

por Hadas Thier

Numa manhã de abril, às 4 horas, o médico chefe no Baystate Health, em Massachusetts, deixou sua casa e viajou para um armazém fora do estado para receber uma remessa de máscaras e trajes médicos da China. Dois agentes do FBI interviram. Eles o abordaram e ameaçaram confiscar o carregamento em nome do governo federal, cedendo apenas quando o médico chamou um congressista. Ainda temendo que os produtos seriam interceptados em outro estado, o médico dividiu o carregamento em dois caminhões, com a esperança de que pelo menos alguns dos produtos chegariam em Massachusetts.

Enquanto isso, do outro lado do País, oficiais do estado em Illinois escreveram um e-mail para mil pequenas empresas (a maioria das quais não tinha nada a ver com assistência médica) solicitando ajuda para reunir Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). O e-mail foi respondido por alguém que dirigia uma empresa de mudanças que, por acaso, “conhecia um cara” na China, e que conseguiu fechar contratos suficientes, uma linha de montagem de cada vez em muitas fábricas, para produzir 1,5 milhões de máscaras.

No final, o controlador do estado dirigiu com um cheque de $3 milhões por algumas centenas de quilômetros para encontrar o cara que conhecia um cara no estacionamento de um McDonald’s. Eles tinham que agir rápido: o estado de Louisiana já tinha oferecido $2 milhões a mais pelas máscaras. E Illinois tinha previamente perdido um contrato de trezentos ventiladores durante a noite, quando o estado de New York foi diretamente ao fornecedor e comprou os ventiladores pelo dobro do preço.

Uma pandemia global mal administrada por um psicopata na Casa Branca preparou o cenário para este desastroso estado de coisas. Enquanto a crise atinge seu pico, ao invés de centralizar a aquisição e distribuição de equipamentos e dispositivos médicos, o Presidente Trump deu aos governadores de estado este conselho: “para respiradores, ventiladores, todo o equipamento – tentem conseguir vocês mesmos”.

Mas, enquanto muitos analistas tradicionais criticaram acertadamente a resposta criminosa do governo, poucos questionaram a busca de lucro que levou o preço das máscaras a sextuplicar, e deu prioridade a quem desse o maior lance para garantir acordos que salvam vidas. A dura realidade é que o mercado funcionou exatamente como está configurado para funcionar.

Globalização corporativa virando-se contra nós

Com oito meses de pandemia, os trabalhadores da linha de frente ainda não estão conseguindo os equipamentos de proteção que eles precisam. De acordo com um relatório da National Nurses United (Nota: enfermeiras nacionais unidas), 87 por cento das enfermeiras têm que reutilizar os EPIs em algum momento, e 27 por cento reportaram que o pessoal em seu hospital diminuiu nos últimos meses.

Uma enfermeira escreveu para Salon: “Eu estou tão desapontada com a nossa falta de preparação como um País para uma pandemia… máscaras N95 rapidamente se tornam esparsas e nós somos forçadas a reutiliza-las por dias, basicamente até elas quebrarem, quando elas são destinadas pelo fabricante para serem usadas uma única vez. Nós temos que coloca-las em um saco de papel pardo entre os usos”.

Muitos comentaristas atribuíram isso a uma lamentável falha nas cadeias de fornecimentos globais em acumular EPIs e ventiladores. De fato, nós estamos vendo décadas de globalização corporativa virando-se contra nós. Enquanto as corporações desnacionalizavam a manufatura – perseguindo mão de obra barata em todo o mundo – diminuir dimensões, inventários enxutos e produção “just-in-time” chegou em casa.

Em um artigo intitulado “Why Are There Still Not Enough Paper Towels?” (Nota: Porque ainda nao há toalhas de papel suficientes?), o Wall Street Journal respondeu sua própria questão:

“A escassez está enraizada em uma busca de décadas por empresas em todos os níveis, manuseando muitos produtos diferentes para obter mais lucro operando quase sem folga. Faça apenas o que você pode vender rapidamente. Peça apenas materiais suficientes para manter a linha de produção funcionando. Tenha apenas vagões suficientes pelo valor de um dia de produção. Estoque apenas itens suficientes em uma prateleira para durar até o próximo lote chegar. O conceito, conhecido como manufatura enxuta ou inventário “just-in-time”, nasceu na hiper eficiente indústria automotiva japonesa, nos anos de 1970, e se tornou uma religião para muitos CEOs americanos. Se espalhou primeiro em Detroit, depois para outros fabricantes americanos e finalmente para outras indústrias, da distribuição para o varejo”.

Enquanto a manufatura nos EUA representava 28 por cento da produção interna do PIB no final dos anos 1950, esse valor é apenas 11 por cento hoje. Um total de 85 por cento da capacidade de produção de máscaras está na China, e os ventiladores são produzidos a partir de peças provenientes de todo o mundo.

Especialistas na área há alertam que as recompensas dos investidores pela produção enxuta são adversas às necessidades de saúde pública. Um artigo publicado na Health Security levantou o alarme em 2017:

“Como a maioria dos produtos nos Estados Unidos, a oferta do mercado de EPIs é baseada na demanda. As cadeias de suprimentos de EPI dos EUA têm capacidade mínima para aumentar rapidamente a produção, resultando em desafios para atender a grandes aumentos inesperados na demanda, que podem ocorrer durante uma emergência de saúde pública. Além disso, uma proporção significante da cadeia de abastecimento é produzida no exterior e pode não estar disponível para o mercado americano durante uma emergência, por causa de restrições à exportação ou nacionalização de fábricas”.

Durante crise anteriores, como a pandemia de influenza H1N1 de 2009, cadeias de abastecimento curvaram sob muito menos pressão do que o que nós estamos encarando agora.

Hospitais enxutos

Para hospitais, manufatura enxuta significa pessoal enxuto. A mão de obra, Russell Gold e Melanie Evans reportaram no Wall Street Journal, “é tipicamente a maior despesa em qualquer hospital, e enfermeiras compõem 42,7% das folhas de pagamento dos hospitais, de acordo com dados do departamento de trabalho federal”.

Assim como a produção de EPIs e equipamentos médicos sofreu com suprimentos enxutos, também os níveis de pessoal dos hospitais. Enquanto os estados se envolviam em guerras de lances para máscaras e ventiladores, os hospitais fizeram o mesmo para enfermeiras em contratos de curto prazo, frequentemente recrutando trabalhadoras de outros hospitais.

O artigo do Wall Street Journal continua a explicar:

“Os hospitais, por projeto, deveriam ser enxutos e eficientes, empurrados para esse lado pelo mercado e políticas de governo. Mas isso deixou os Estados Unidos perigosamente despreparados.”

Dirigidos por acionistas para aumentar a receita, os hospitais cortaram custos de mão de obra e transferiram recursos da entrada de pronto socorro para procedimentos cirúrgicos lucrativos. O resultado: menos hospitais e menos capacidade de tratamento intensivo. Desde 1975, o número de hospitais caiu 12 por cento, apesar de um aumento da população de cerca de 50 por cento.

Na cidade de New York, o sistemático desmantelamento do sistema de hospitais públicos destruiu a capacidade da cidade de lidar com a crise. Uma cidade que perdeu mais de uma dúzia de hospitais em tantos anos, agora perdeu mais do que um a cada quatrocentos de seus habitantes para a COVID-19.

Hoje, a maioria dos leitos de hospital da cidade estão nos bem dotados hospitais privados, na maioria das vezes localizados em Manhattan e cuidando de uma clientela mais rica e mais branca. Esses hospitais desfrutam de confortáveis receitas oriundas dos honorários de seus pacientes – a maioria coberta pelo Medicare ou seguros privados. Enquanto isso, os hospitais públicos, que contam com reduzidos pagamentos de Medicaid e servem pacientes que são amplamente sem seguro, foram deixados para definhar.

Manhattan orgulha-se de cinco leitos hospitalares para cada mil habitantes, enquanto no Queens (um dos condados mais atingidos na nação), há apenas 1,8 leitos por mil habitantes, no Brooklyn, 2,2, e no Bronx, 2,4. Não surpreendentemente, esses números se correlacionam fortemente com demografia de raça e classe. A maioria dos habitantes de Manhattan são brancos, e a maioria dos habitantes do Queens, Bronx e Brooklyn são não brancos. A renda mediana no Bronx é de $38.000, comparado a $82.000 em Manhattan.

O que isso significa na prática, o New York Times reportou esse verão, é que pacientes em alguns hospitais públicos comunitários foram três vezes mais prováveis de morrer de COVID-19 do que aqueles nas partes mais ricas da cidade. Nos hospitais públicos, os pacientes foram deixados desatendidos em enfermarias com falta de pessoal. Alguns morreram simplesmente porque não havia ninguém em volta para ajuda-los a ir ao banheiro, e eles eventualmente removiam suas próprias máscaras de oxigênio. A equipe tinha que contar com ventiladores velhos e inefetivos, e não tinha acesso a máquinas de diálise ou a drogas experimentais. As instalações não tinham equipe suficiente para virar os pacientes de bruços, uma estratégia básica para ajudar os pacientes a respirar. Médicos e enfermeiras trabalharam em um total ponto de ruptura.

Enquanto isso, nos hospitais de crosta superior do outro lado do rio em Manhattan, camas giratórias, máquinas de by-pass coração-pulmão e drogas especializadas levaram a resultados muito diferentes. E quando o próprio Presidente foi diagnosticado com COVID-19, nenhuma despesa foi poupada para seu tratamento de última geração. A maioria das estimativas do custo vão de centenas de milhares de dólares a mais de um milhão.

Nós precisamos de uma economia planejada

Nós vivemos em uma sociedade onde cada decisão – seja por chefes corporativos individuais, ou por governos que dependem de receita corporativa – é circunscrita pela busca de lucros de curto prazo. Isso parece tão natural que mal é registrado durante tempos “normais”. Mas, durante uma pandemia, sua barbárie é deixada claro.

Como John Hick, diretor médico no Hennepin Healthcare explicou ao Wall Street Journal, “Você está olhando para uma entidade do setor privado que de repente tem que assumir a maior resposta do setor público do mundo. Eles não estão preparados para isso porque não há incentivo para fazê-lo”.

Lisa, uma enfermeira em Alameda, Califórnia, que recentemente lutou com equipe e segurança do paciente, disse a Salon:

Nós simplesmente não podemos dar o cuidado que você precisa por causa desse esforço corporativo para economizar dinheiro. Nós estamos em desacordo existencial diariamente. E nós precisamos queimar o sistema e nós precisamos do Medicare for All. Fim da história. Nosso complexo médico industrial está quebrado, e é inefetivo e absurdo. E homicida. Enquanto o número de mortos aumentava na primavera e caminhões refrigerados estacionados fora dos hospitais colecionavam corpos, o mercado provou o que ele realmente faz melhor: fomentar a competição e o lucro, não importa o custo humano.

A economia dominante encoraja inabalável confiança no que Adam Smith famosamente apelidou de a “mão invisível” do mercado, para eficientemente prover as coisas que a sociedade precisa. Mesmo assim, Adar Poonawalla, chefe executivo da maior fabricante de vacinas do mundo, recentemente estimou que vai levar pelo menos até o final de 2024 para produzir vacinas suficientes para inocular a população mundial. Simplesmente não há recursos suficientes sendo dedicados para aumentar a produção mais rapidamente.

Nos curto e médio prazos, nós precisamos lutar com força para uma agenda econômica e de saúde que inclua o Medicare for All, financiamento maciço para hospitais públicos, um programa de empregos centrado em saúde da comunidade, restrições à leis de patente para produção e distribuição de vacinas, e o uso do Ato de Produção de Defesa para organizar os recursos dos fabricantes dos EUA e impulsionar a produção de equipamentos médicos.

No longo prazo, nós precisamos conceber uma sociedade organizada em linhas completamente diferentes, na qual o desenvolvimento de curas e vacinas possui recursos adequados, apesar dos maiores lucros associados à medicação contínua para doenças crônicas. Onde, ao invés da competição entre desenvolvedores, cientistas implorando por dinheiro e guerras de lances entre os países, nós enfrentamos uma crise internacional com colaboração internacional. Onde o Estado, ao invés do capital privado, é o superintendente de nossos sistemas de saúde. Onde a produção e distribuição de produtos salva-vidas são democraticamente planejadas, ao invés de deixadas aos caprichos do mercado.

Conceber tal sociedade necessariamente envolve desafiar o imperativo do mercado, particularmente naquelas áreas da sociedade – como assistência médica – que provêm serviços vitais. A indústria farmacêutica deveria ser socializada, e os hospitais privados deveriam ser propriedade pública.

Mais amplamente, nós precisamos de uma economia gerida democraticamente para orientar a produção e o desenvolvimento tecnológico na direção de melhorar a qualidade de vida para a vasta maioria da humanidade. Se quisermos substituir os lucros de curto prazo para poucos por necessidades humanas para muitos, como o motivador das tomadas de decisões, então nós precisamos de um Estado democrático para realizar tal agenda. O Estado, ao invés do mercado, pastorearia inovações em assistência médica e outras tecnologias. Os recursos para pesquisa sobre métodos de produção mais eficientes e sustentáveis seriam sistematizados. A alocação de recursos na sociedade seria organizada por um setor financeiro nacionalizado.

Como Leigh Phillips e Michal Rozworski argumentaram:

“Se algo é lucrativo, não importa quão prejudicial, vai continuar a ser produzido, na ausência de intervenção não mercantil, ou seja, planejamento. Da mesma forma, se algo não é lucrativo, não importa quão benéfico, não vai ser produzido, de novo na ausência de planejamento”.

Os detalhes de exatamente como uma economia planejada aconteceria são discutíveis, e criar uma sociedade onde instituições de Estado são responsáveis pelas necessidades da vasta maioria, ao invés de uma elite corporativa, vai exigir uma tremenda luta de longa distância. Mas é claro que o mercado deve ser deixado de fora da equação em questões de vida ou morte, e que uma visão mais ampla para o que substitui o mercado é desesperadamente necessária. A discussão, como Phillips e Rozworski colocam, deveria ser “que tipo de planejamento, ao invés de se planejar”. Há um futuro para a humanidade no controle democrático, onde o mercado só negociou a morte.

Hadas Thier é ativista e socialista em New York, e a autora de “A People’s Guide to Capitalism: An Introduction to Marxist Economics. Ela está no Twitter como @HadasThier.

Tradução: Luciana Cristina Ruy

Jacobin

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