PUBLICADO EM 30 de out de 2019
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A morte de Santo Dias e a difícil greve dos metalúrgicos de São Paulo em 1979

A história do metalúrgico Santo Dias, morto pela polícia há 40 anos, levanta debates como a influência da igreja católica nos movimentos de esquerda na década de 1970, o papel das oposições sindicais e, sobretudo, a maneira como o Estado lidava com os trabalhadores durante a ditadura militar: à bala.

Foto: Nair Benedicto

Por Carolina Maria Ruy

Santo Dias

Natural de Terra Roxa, São Paulo, Santo Dias da Silva era o filho mais velho dos agricultores Jesus Dias da Silva e Laura Amâncio Vieira.

Em 1962, aos 20 anos, participou de um movimento por melhores condições de trabalho na região de Fazendas onde morava e trabalhava. Isso lhe custou a expulsão, não só dele, mas de toda a família, daquelas terras. Partiu para a capital, deixando os pais e os sete irmãos, que permaneceram na roça.

Na cidade Santo estabeleceu-se na Zona Sul de São Paulo e começou a trabalhar como metalúrgico. Aquela região abrigava, segundo a pesquisadora Maria Nelma Coelho[1], uma vanguarda do movimento sindical, com forte organização dos trabalhadores das grandes fábricas que lá se concentravam.

Metalúrgicos de São Paulo

O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, que ainda hoje representa a categoria de Santo, sofreu com a repressão, antes mesmo do golpe militar. Affonso Delellis e José Araújo Plácido, eleitos presidente e secretário geral no início de 1963, foram presos em dezembro por participarem da chamada “Rebelião dos Sargentos”. Ao serem libertados, em janeiro de 1964, não reassumiram a direção do Sindicato e passaram para a ação clandestina. Em depoimento ao Centro de Memória Sindical (CMS)[2], Delellis afirmou que o golpe militar começou no Sindicato, com a prisão dele e de Araújo.

A intervenção viria pouco depois, em abril de 1964, quando Carlos Ferreira dos Santos assumiu a presidência do Sindicato em uma gestão que duraria pouco mais de um ano. Com ressalvas por parte do governo, as eleições sindicais voltariam a acontecer em 1965. Naquele contexto, em que o movimento sindical estava abalado pela ofensiva militar, a direção do Sindicato, optou por compor com o chamado “grupo do Joaquim”. Assim, o metalúrgico Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, foi eleito e tomou posse no dia 31 de agosto de 1965, inaugurando uma etapa na vida do Sindicato marcada pela tentativa de viabilizar a ação sindical dentro dos padrões impostos pela ditadura[3].

Oposição Sindical Metalúrgica

Consta que naquele mesmo ano de 1965, Santo Dias integrou o grupo de sindicalistas que começou a formar o chamado Movimento de Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (MOSMSP). Oficialmente o MOSMSP, que agregava a Ala Vermelha, Ação Popular, POLOP, POC, PORT, PCdoB, PCB, Grupo 1º de Maio, membros da Pastoral Operária, Frente Nacional do Trabalho (FNT), militantes independentes, entre outros, deu seus primeiros passos em 1967.

Daquele grupo sobressaia a influência de movimentos católicos das chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ou oriundos da Juventude Operária Católica (JOC) e Ação Católica Operária (ACO), que conforme descreveu a pesquisadora Maria Nelma, incentivavam a ação de base nos locais de trabalho e faziam “um trabalho miúdo no cotidiano da fábrica”. Para ela a Oposição confundiu-se com a ação da pastoral na década de 1970.

Engajado naquele movimento, o católico Santo era membro ativo das CEBs e representante leigo perante a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Uma sequência de greves

No plano nacional, embora no aniversário de 10 anos do golpe, em 1974, o governo militar já falasse em “abertura lenta e gradual”, torturas e assassinatos ainda corriam soltos. Casos escabrosos como os do estudante Alexandre Vannucchi Leme, Wladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, mortos respectivamente em 1973, 1975 e 1976, nos porões do DOI-CODI, tornaram-se emblemáticos da truculência do regime impondo um desgaste aos militares.

Entre os trabalhadores outro motivo de revolta, além da repressão, era a política econômica. E esta revolta se intensificou após a denúncia feita pelo Dieese em 1977, de que os índices de correção salarial de 1973 haviam sido manipulados pelo Governo, rebaixando os rendimentos. Foi o estopim para a eclosão de uma sequência de greves que começou no ABC e durou três anos seguidos a partir de 1978.

Em 1979, no auge da onda de greves, a inflação atingiu o mais alto nível desde 1964, chegando a 77,2%, o que impulsionou o Movimento contra a Carestia. Foi em março daquele ano que o MOSMSP realizou seu primeiro Congresso, onde deliberou que os sindicatos deveriam ser independentes do Estado e organizados a partir das comissões de fábrica.

Greve dos Metalúrgicos de São Paulo, outubro de 1979.

Assembleia acata proposta dos 83%

Em São Paulo, na campanha salarial, em outubro, a Oposição emplacou, em assembleia realizada na sede do Sindicato, na Rua do Carmo, a reivindicação de 83% de aumento salarial ameaçando entrar em greve caso o patronato não aceitasse.

Em depoimento ao CMS[4], o metalúrgico Newton Cândido, que era do Partido Comunista Brasileiro (PCB), disse que naquela assembleia o entusiasmo era tanto que o pessoal mais radical, ligado ao MOSMSP, chegava a tocar bumbos: “Uma faixa de um metro de altura começava desde o início do salão até quase no fundo do palco, escrita: ‘Os trabalhadores da Metal Leve exigem 83%, ou greve’. (…) Quando vi, foi decretada a greve. Os bumbos não deixavam ninguém falar”. A assembleia foi no domingo e a greve começou no dia seguinte. Mas, conforme relatou Cândido, só os militantes pararam: “tava tudo normal, todo mundo trabalhando”.

Segundo João Carlos Gonçalves, o Juruna, a greve em São Paulo foi mais difícil: “Foram greves de piquete. Não foi uma mobilização fácil”. Juruna, que iniciou sua formação política na Juventude Operária Católica e, metalúrgico da Villares, na Zona Sul de São Paulo, entrou no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo em 1979, conta que entre os sindicalistas haviam duas posições divergentes naquela situação: “fazer a greve pelo Sindicato, como o Lula fez em São Bernardo, que entrou na diretoria para ganhar espaço e afastar os sindicalistas considerados mais pelegos, ou agir através das ‘Inter fábricas’, que eram como sindicatos independentes”. Prevaleceu a ação independente.

Escutei três gritos e o Santo Caiu no chão

Para a oposição estava claro que, enquanto em 1978 as greves surpreenderam os patrões, em 1979 eles já estavam preparados, e as prisões começaram antes mesmo do movimento.

No primeiro dia da paralisação, em 28 de outubro, locais alugados pelo Sindicato, que abrigavam os chamados “comandos de greve”, foram invadidos pela Polícia Militar e mais de 130 pessoas foram presas. Os metalúrgicos passaram, então, a se reunir na Capela do Socorro.

No dia 30, Santo Dias, que era do comando de greve, ao sair para conversar com os operários que entrariam no turno da tarde e reforçar um piquete em frente à fábrica Sylvânia[5], foi baleado pelas costas por um policial e morreu no local. Ele tinha 37 anos.

Ao contrário da versão dos policiais, que afirmaram que os trabalhadores iniciaram o conflito, nenhum sindicalista estava armado, conforme declaração do metalúrgico Luís Carlos Ferreira, em depoimento prestado à Comissão de Justiça e Paz. “Os policiais estavam puxando o Espanhol por um lado. Do outro, Santo segurava o companheiro. Começou então a violência, com tiros para cima e, depois, eu vi o Santo ser atingido na barriga, de lado, e o tiro sair do outro lado. Escutei três gritos e o Santo caiu no chão. Os policiais continuaram a perseguir outros. Eu fiquei atrás de um poste e posso, com toda a segurança, reconhecer o policial que atirou no Santo: tem cerca de um 1,80, alto, forte e aloirado”, disse Ferreira[6]. Ele reconheceu o soldado Herculano Leonel como o autor do disparo que matou Santo Dias.

Santo foi levado sem vida pelos policiais para o Pronto-Socorro. Sua esposa entrou à força no carro que transportava seu corpo para o Instituto Médico Legal (IML) a fim de impedir que seus restos mortais desaparecessem, como era comum com adversários políticos da ditadura.

Cortejo Santo Dias. Foto: Ricardo Alves.

O enterro de Santo tornou-se um ato político

A notícia de sua morte correu pelos vários meios de comunicação. Seu corpo seguiu para o velório na Igreja da Consolação. No dia 31 de outubro, seu enterro tornou-se um ato político que reuniu cerca de 30 mil pessoas. Foi uma grande manifestação de indignação contra a morte do líder operário, pelo livre direito de associação sindical e de greve e de resistência contra a ditadura militar.

A greve foi encerrada após 12 dias de paralisação. Embora não tenham conseguido os 83%, os metalúrgicos conseguiram aumento salarial superior ao proposto pela Fiesp. “Mas a greve custou demissões, prisões e a morte de Santo Dias”[7], concluiu Maria Nelma.

O processo contra o policial Herculano Leonel correu na Justiça Militar. Ele foi preso em 5 de dezembro de 1979 e a condenação a seis anos de prisão, saiu só no dia 8 de abril de 1982. Quatro meses depois, o tribunal anulou a sentença com base em um recurso apresentado pelo PM. Depois de vários recursos, a Procuradoria Geral do Estado entrou com recurso extraordinário no STF, que arquivou o processo em setembro de 1984.

Dom Paulo Evaristo Arns e os bispos de São Paulo no velório de Santo Dias. Foto Ricardo Alves.

A igreja, a oposição e a repressão

A história de Santo Dias, com final trágico, sem justiça, nem reparação, é exemplo da dura vida dos trabalhadores, sobretudo daqueles que ousam protestar por uma sociedade com mais igualdade.

Ele foi, antes de tudo, um cristão abnegado que encontrou no movimento social, em particular na Oposição Sindical Metalúrgica, a oportunidade para vivenciar seu idealismo.

Não foi só ele. O casamento entre cristianismo e ação política e social guiou boa parte das forças progressistas que surgiram durante a ditadura militar, formando diversas lideranças, muitas ainda atuantes, com perfil um tanto idealista, um tanto abnegado, um tanto radical.

Mas, se por um lado, a postura radical e intransigente do MOSMSP garantiu a seus militantes uma coerência e coesão ideológica, por outro ela interditou a abertura ao diálogo.

Para Juruna, o fato de o velório de Santo Dias ter sido na igreja da Consolação, por exemplo, tirou o Sindicato do processo: “A greve foi conduzida pela instituição. Nós éramos militantes da Oposição, mas éramos do Sindicato. Todo mundo era sócio do Sindicato, inclusive ele. Separar o Santo Dias foi, na minha opinião pessoal, um erro. Usar o Sindicato para o velório seria mais simbólico para o trabalhador sentir que seu Sindicato estava na luta e que um trabalhador foi assassinado. E não separar, como se só a turma da Oposição fosse dona do movimento. Um erro político”, disse.

Ele conta que a partir de uma avaliação sobre a greve de 1979 em São Paulo, se iniciou uma discussão entre a Oposição, se valeria a pena continuar com esse paralelismo sindical ou se não seria mais interessante compor com a diretoria: “Depois da greve de 1979 ficou claro que havia um racha na Oposição. Um segmento, representado pelo PCB, PCdoB e MR-8, começou a trabalhar a possibilidade de entrar na diretoria compondo com os sindicalistas que lá estavam”. Talvez não fosse o caso de Santo Dias. Para Juruna, embora Santo tivesse um perfil mais moderado, e diversos artigos confirmam isso descrevendo-o como um homem cordato, apaziguador e até tímido, “ele era da turma do Waldemar Rossi[8], chegou a compor uma chapa com ele, e o Waldemar não compôs com ninguém nunca”.

De fato, após a greve parte da oposição buscou compor com a diretoria, como relatou ao CMS[9], o metalúrgico do PCdoB, Vital Nolasco: “Estávamos com uma visão de que éramos oposição, mas éramos sindicato”. A avaliação de Nolasco era que a correlação de forças naquele momento não era suficiente para varrer da vida sindical o Joaquim e sua turma “Em 1984 nós ainda não tínhamos conquistado as Diretas Já, a ditadura militar continuava, não sabíamos o que ia dar isso”.

O processo de redemocratização viria, enfim, pouco depois. Santo Dias não pôde ver o fim da ditadura. Ele entrou para a história como mais um exemplo do cruel conflito entre resistência e repressão.

Hoje, quarenta anos após sua morte, resgatar, rever e manter viva esta memória é fundamental para o aprendizado democrático e civilizatório que nós, brasileiros, tanto almejamos e de que tanto necessitamos.

Carolina Maria Ruy é pesquisadora, jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.

[1] Maria Nelma Gomes Coelho, O Movimento Sindical Metalúrgico na Zona Sul de São Paulo: 1974 a 2000, tese de doutorado, FFLCH, 2007.

[2] 30/06/1979.

[3] Carmem Lúcia Evangelho Lopes, A Organização Sindical dos Metalúrgicos de São Paulo, tese de doutorado, FFLCH, 1992.

[4] 15/04/1989.

[5] Instalada em um enorme terreno no bairro de Santo Amaro, São Paulo, na década de 1960, a fábrica Sylvania produzia tubos para televisores. Em 2007 foi fechada e seu terreno vendido para uma construtora, que demoliu a antiga edificação para construir um condomínio residencial (Memorial da Resistência de São Paulo).

[6] O relato foi publicado na época pelo Boletim do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo

[7] Maria Nelma Gomes Coelho, O Movimento Sindical Metalúrgico na Zona Sul de São Paulo: 1974 a 2000, tese de doutorado da FFLCH em 2007.

[8] Waldemar Rossi foi coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo, metalúrgico, ativista do MOSMSP.

[9] 14/08/1989.

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