Por Carolina Maria Ruy
É justo pontuar que a Primeira Guerra Mundial (1914/1918) pressionou o país a diversificar sua economia e provocou uma onda migratória que mudou o perfil da classe trabalhadora. Tanto que datam daquele período as primeiras greves operárias e a Confederação Operária Brasileira (COB), que existiu entre 1906 e 1920.
Mas embora já existissem indústrias no Brasil antes de 1930, sobretudo em torno da economia cafeeira, elas não eram suficientes para conferir um caráter urbano na configuração brasileira. Os latifúndios e as oligarquias rurais é que davam o tom.
Segundo o jornalista José Luiz Del Roio, em entrevista ao Centro de Memória Sindical, na época da Greve Geral de 1917 “a dominação oligárquica foi praticamente total” com “controle do voto, a maioria da população brasileira camponesa, mergulhada na miséria e ignorância”.
Ligada ao que ele chamou de “feudalismo do campo”, a burguesia industrial mantinha uma concepção escravocrata em relação aos operários. “Tanto é”, diz Del Roio, “que os primeiros italianos que vieram para cá chamavam esses trabalhadores [os novos imigrantes] de squiave bianque, os escravos brancos”. Del Roio explica que se tratava de uma classe feroz, que não tinha um projeto de nação e não concedia nada.
Em um contexto como aquele, em que práticas que se tornaram conhecidas como coronelismo e voto de cabresto eram frequentes, a luta das mulheres por participação política e pelo direito ao voto não encontrava espaço. Da mesma forma, a luta por direitos trabalhistas chocava-se com a mentalidade escravista dos barões do café com leite.
O arranjo que vigorou nas primeiras décadas da República fincou raízes na política e na economia brasileira, com forte influência na cultura e nas relações sociais, mas o sistema que o sustentava explodiu com a instabilidade gerada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929. No ensejo daquela crise global que varreu o mercado do café, irrompeu a chamada Revolução de 30 catalisando as mudanças que se impunham para o país em um mundo que depois da Primeira Guerra já não era mais o mesmo.
Getúlio Vargas assumiu a chefia do Governo Provisório em 3 de novembro de 1930, rompendo com as oligarquias que comandavam o país e investiu em um projeto de industrialização que também fincou raízes, passando a compor as bases estruturais do país.
Demandas históricas como o voto feminino e direitos trabalhistas encontraram vazão nos planos de Vargas porque iam de encontro com as necessidades dos novos tempos. Necessidades como a formação de cidadãos, de um mercado consumidor e de trabalhadores preparados para a vida urbana.
Conquista do voto feminino
A conquista do voto feminino foi talvez o mais emblemático avanço em uma série de mudanças proporcionadas pela criação do Código Eleitoral pelo Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932. O Decreto também criou a Justiça Eleitoral e instituiu o voto secreto, uma grande evolução com relação à Constituição de 1891 que, ao prever o voto aberto, permitia práticas de coerção como o voto de cabresto.
A luta das mulheres por mais direitos vinha de longe como explica a historiadora Teresa Cristina De Novaes Marques no livro “O voto feminino no Brasil” (Edições Câmara, 2018). Sem o ativismo de personalidades como Nísia Floresta (1810/1885), Leolinda Daltro (1859/1935) e Bertha Lutz (1894/1976) as mulheres não teriam conquistado o poder de votar e serem votadas em 1932.
Teresa Cristina fala que: “Quando Vargas deu sinais de que pretendia reformular as leis eleitorais do país e promover eleições para o Legislativo, as feministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e de outras entidades políticas compostas por mulheres procuraram conversar com o presidente para que, finalmente, o direito de votar fosse estendido às mulheres brasileiras”.
Consta que Vargas, ao receber as delegadas do Segundo Congresso Internacional Feminista no Palácio do Catete em junho de 1931 manifestou simpatia à causa pois achava que “o país estava preparado para o acolhimento dessas ideias, visto que elas não contrariavam a tradição da família brasileira”.
A comissão responsável por debater o voto feminino ainda tentou impor restrições às mulheres casadas, que deveriam ter autorização dos maridos. Mas, segundo Tereza, “Ouvindo o apelo das mulheres a essas restrições, Vargas revisou pessoalmente o texto da comissão e o decreto do novo Código Eleitoral, publicado em 24 de fevereiro de 1932, acolheu o voto feminino sem condições excepcionais. As mulheres poderiam votar e ser votadas”.
A exceção foi às mulheres que não eram alfabetizadas. O voto foi estendido a todos, sem restrição, inclusive aos analfabetos, somente na Constituição de 1988.
Criação da carteira profissional
Um mês depois da criação do Código Eleitoral, o decreto nº 21.175, de 21 de março de 1932, instituiu a carteira profissional no processo de estabelecimento do Ministério do Trabalho, (criado em 26 de novembro de 1930). Ao substituir a Carteira de Trabalhador Agrícola, o documento assinalava o anseio modernizador daquele novo governo.
Os dizeres no verso da carteira indicavam a nova linha, expondo tanto o controle do Estado quanto a proteção legal dos trabalhadores, além do vínculo sindical que permitiu durante décadas a arrecadação e estruturação dos sindicatos:
“Por menos que pareça e por mais trabalho que dê ao interessado, a carteira profissional é um documento indispensável à proteção do trabalhador. Elemento de qualificação civil e de habilitação profissional, a carteira representa também título originário para a colocação, para a inscrição sindical e, ainda, um instrumento prático do contrato individual de trabalho”.
A carteira profissional dava ao governo o poder de regular as relações de trabalho e de aplicar as novas leis garantindo o acesso a direitos como salário mínimo, férias anuais e a jornada de 8 horas diárias seis vezes por semana (lei de maio de 1932, atendendo a uma reivindicação histórica dos operários que chegavam a trabalhar 14 horas por dia).
Interesses que se chocam a todo momento
Apesar dos períodos de graves retrocessos pelos quais o Brasil passou nesses noventa anos, como os 21 anos de ditadura militar (1964 a 1985) e os últimos anos, desde o governo reformista e liberal de Michel Temer até a política dos absurdos de Jair Bolsonaro, aquelas conquistas de 1932 estão assimiladas pela nossa sociedade e pela nossa cultura. Estão enraizadas.
A regulação das relações de trabalho com a consolidação de direitos sociais e a criação do Código Eleitoral que instituiu o voto feminino representaram uma ruptura radical com o perfil escravista e colonialista que dominava a sociedade brasileira sem freios e contrapesos. E sua implementação forçou a sociedade a desenvolver uma nova visão sobre as mulheres e sobre os trabalhadores, que passam a ser vistos como cidadãs e cidadãos.
As conquistas sociais convivem com o atraso sempre à espreita em um movimento complexo e não linear em que interesses conflitantes se chocam a todo momento. Interesses dos trabalhadores e da população vulnerável em ter mais direitos, mais dignidade, melhores condições, e, do outro lado, interesses das classes que se beneficiam das desigualdades e assimetrias do mundo capitalista.
Sem aquelas rupturas e transformações que ocorreram a partir de 1930, no entanto, estaríamos hoje desarmados para enfrentar as situações que tivemos, e temos, que enfrentar.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical
Neuralice Maina
Parabéns Carolina Maria Ruy, Jornalista e Coordenadora do Centro de Memória Sindical de SP pela importante pesquisa e excelente artigo Voto feminino e carteira profissional: etapas civilizatórias da construção do Brasil, enaltecendo as lutas e conquistas das Mulheres. Gratidão ❤️