PUBLICADO EM 04 de mar de 2022
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Série sobre a Guerra do Vietnã revela caráter beligerante dos EUA

Ataques, intimidação, cerceamento, manipulação da opinião pública, cooptação, forças que avançam para o outro lado do globo, disputas indiretas de poder. São temas que tomaram conta do noticiário neste início de 2022 e que muitos analistas comparam ao fim Segunda Guerra Mundial em 1945.

Mas não é preciso ir tão longe. Depois que os aliados decretaram a vitória sobre a aliança do eixo, colocando um ponto final no projeto nazista de Adolf Hitler, as práticas descritas acima voltaram-se para outros alvos, pavimentando um projeto de dominação dos Estados Unidos da América pelo mundo. Um projeto que se mantém sob as mesmas bases desde o lançamento de duas bombas atômicas no Japão.

A expansão e consagração da doutrina neoliberal contou não só com o militarismo ostensivo e implacável, mas também com o controle da indústria cultural e de comunicação, o que torna difícil a vida dos ocidentais que buscam uma visão crítica, realista e menos tendenciosa dos eventos. Resta a nós pesquisar, filtrar e interpretar.

Dito isso, para entender melhor a geopolítica dos últimos 77 anos sugiro a série “A Guerra do Vietnã – Um Filme de Ken Burns e Lynn Novick”. Com vídeos originais e riqueza de detalhes a série documental se aprofunda na história. Ela mostra a progressiva participação dos EUA no conflito. Revela mentiras que o governo sustentava e como eles tentaram de todo modo esconder dos conterrâneos os horrores promovidos pelo Exército como os repetidos lançamentos de Napalm em ataques aéreos, devastando aldeias inteiras e provocando efeitos ambientais sentidos até hoje, mais de 45 anos depois.

Interessante notar que entre 1955 e 1975, período em que se estendeu o conflito, passaram pelo governo americano presidentes democratas e republicanos, do badalado John Kennedy ao repulsivo Richard Nixon. Entre muitas outras coisas a série mostra que na Casa Branca sabia-se da derrota muitos anos do país se retirar e que eles mantiveram o Exército em combate “70% para não saírem humilhados, 20% contra a China e 10% pelo Vietnã” como afirmou um dos entrevistados.

Mostra também o massacre em My Lai, revelado ao público através das fotos de Ron Haerbele, gravações que expõe o desdém que Nixon tinha pelo Vietnã e a espetacular queda de Saigon.

Haerbele, o fotógrafo, desembarcou na aldeia de My Lai na manhã de 16 de março de 1968, junto com uma unidade do Exército. Em novembro de 1969 uma reportagem do jornalista Seymour Hersh driblou a tentativa do governo de encobrir o massacre e divulgou as fotos e os relatos sobre as forças americanas arrasando o vilarejo estuprando, torturando e matando a sangue frio centenas de civis, entre idosos, mulheres e crianças.

Aquele não foi o único caso desse tipo na Guerra do Vietnã, mas My Lai tornou-se emblemático por causa fotos chocantes de Haerbele. Passados 50 anos, em março de 2018, ele disse à revista Time que ouviu comandantes dizendo aos soldados que chegavam no Vietnã que a vida não tinha significado para os vietnamitas, que eles não eram humanos.

Mas, embora apresente todo o horror daquele triste episódio que marcou a segunda metade do século 20, o documentário reforça sua mensagem de pesar para os quase 60 mil soldados estadunidenses mortos, desprezando os mais de 1 milhão de vietnamitas que perderam a vida.

De qualquer forma é um material rico, bem organizado e que oferece um bom panorama cronológico. Se for bem lida a série deixará claro o caráter beligerante dos EUA quando o assunto é expandir seu poder em regiões muito distante de suas fronteiras.

No texto O Vietnã foi aqui (Revista Fapesp, julho de 2004) a jornalista Ruth Helena Bellinghini diz que “antes de oficializar sua presença militar no Vietnã, os EUA suprimiram todos os governos que, por linha política ou econômica, pudessem contestar de alguma forma seu ideário”. “Não é coincidência que o golpe militar no Brasil tenha ocorrido em 31 de março de 1964 e que a intervenção militar americana no Vietnã tenha início em agosto. Eles primeiro resolveram a situação da América Latina e partiram para a guerra aberta na Ásia”, diz.

Parte essencial desta política de dominação é manipular as informações. A história mostra que o ângulo das narrativas dominantes na imprensa ocidental muda dependendo de qual lado os EUA está. Se o país está atacando, as vidas de pessoas inocentes são relativizadas e a questão política é ressaltada. Se o país ou seus aliados estão sob ataque a cobertura ganha um enfoque mais intimista com o pretexto de despertar a compaixão humana contra o conflito. O tom da cobertura durante os 20 anos em que os EUA devastaram o Afeganistão, por exemplo, foi mais político do que humanitário.

Comparando a série às notícias atuais sobre o avanço das tropas russas na Ucrânia, vemos como o projeto de poder estadunidense se apoia na coerção de governos, no patrocínio de golpes de estado, na expansão geográfica de sua doutrina e no cerceamento de países pelos quais se considera ameaçado.

Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.

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