PUBLICADO EM 10 de jan de 2023
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“Ao ódio responderemos com amor”

Esse é um trecho do discurso de posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Na sequência, ele afirma: “ao terror e à violência”, responderemos “com as leis e suas mais duras consequências”.

Palavras fortes e importantes. Sobre elas, muito já se disse. E, a partir delas, como tenho insistentemente repetido junto com tantas outras pessoas, é fundamental recuperar a memória e exigir a responsabilidade. Não apenas pela violência da ditadura civil-militar, mas também pelo genocídio que resultou quase 700 mil mortes, tantas delas evitáveis, durante a pandemia da covid-19. Casos como o de Marielle, Anderson, Dom, Bruno e tantas outras vítimas dessa violência reiteradamente praticada ou estimulada por homens de poder precisam de resposta.

A experiência de ontem revela a crise profunda que estamos enfrentando e quão distantes estamos da possibilidade de mudança estrutural, a partir das “leis e suas mais duras consequências”. É preciso bem mais do que isso.

“Milhares de terroristas seguem em frente ao Congresso Nacional”: foi o que ouvi, quando liguei a TV no domingo, 8 de janeiro de 2023. Não deixa de ser irônico. As pessoas estão mobilizadas, ainda que a maioria se comporte e fale como se participasse de uma daquelas seitas, cujo desfecho pode ser um ato de autoimolação coletiva.

Faz 40 dias que, patrocinadas pelo “agro” – segundo depoimentos divulgados ontem pela imprensa – elas estão acampadas nas portas dos quartéis, vestidas de verde-amarelo, utilizando redes sociais para disseminar ódio e fomentar atos de ruptura institucional. Agiram com a cumplicidade de parte do exército e, sobretudo, dos então dirigentes do país. Tanto Bolsonaro como Mourão manifestaram-se inúmeras vezes minimizando a gravidade de pedidos de golpe de estado e tratando bolsonaristas fanáticos como patriotas.

Quando vários ônibus chegaram em Brasília carregando “cidadãos de bem”, que se dirigiram aos prédios dos Três Poderes do Estado e saíram depredando tudo, não houve reação por parte do governo estadual. Certo, eles agiram em um domingo, quando Brasília estava esvaziada. Quando toda a galera colorida e desarmada, que comemorou a posse, já havia voltado para casa. Mas o que importa perceber é que há nesse evento algo que merece uma reflexão mais profunda: o verdadeiro revertério que um ato como esse, causa no senso comum. Talvez não hoje, talvez não logo. Fato é que certamente não passaremos incólumes por essa quebra de paradigma. Afinal de contas, fomos sempre as pessoas críticas do sistema, aquelas acusadas de arruaceiras. Era contra professoras, metalúrgicos, garis, estudantes, que a força do Estado era reivindicada.

Só lembrar o que ocorreu em 2015, quando uma manifestação de professoras em Curitiba transformou-se em um verdadeiro massacre, com mais de 200 pessoas feridas. Entre elas, uma mordida por um cão da polícia e outras atingidas por tiros de bala de borracha.

Em dezembro de 2016, após o golpe que inaugura esse triste período da nossa história, milhares de pessoas cercaram o Congresso, pedindo que a PEC 55 (o teto de gastos sociais, cujo efeitos deletérios foram apontados no discurso de posse) fosse retirada de pauta. Não invadiram nada, não jogaram bombas nem pediram golpe. Isso não as impediu de serem duramente agredidas. A tropa de choque da Polícia Militar usou bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, cavalos, cães e cassetetes. De lá pra cá, como historicamente acontece no Brasil, cada greve, cada manifestação social tem sido respondida com força e fúria.

O imperativo sempre foi espancar, prender e desmobilizar os insurgentes. E, nos meios de comunicação de massa, pedia-se a lei e ordem, com a anuência escandalizada dos “cidadãos de bem”. Eis que são aquelas e aqueles que sempre olharam manifestações coletivas com nojo e ódio, que recebem hoje o epíteto de terroristas.

E seus atos não se confundem com greve, que fique muito claro.

Para quem ontem se manifestou, não há problema na destruição de direitos sociais, na miséria, na fome, na desigualdade, desde que não as atinja. Não há problema no desmatamento, na autorização para uso de agrotóxicos ou porte de armas, desde que elas sigam mantendo suas vidas confortáveis. Flertar com a impossibilidade de futuro não as mobiliza, mas a derrota do capitão sim. Estão doentes; são fanáticas, quebraram e destruíram bens que custarão dinheiro público. Dinheiro que falta para saúde, educação, previdência e investimento em quem efetivamente trabalha ou empreende.

As situações são, portanto, em vários aspectos, incomparáveis.

Mas, por mais que seja desconfortável admitir, guardam entre si algo em comum: a vontade de ruptura com a ordem imposta pelo Estado e o despertar de um punitivismo atávico, que serve à manutenção de uma ordem excludente e desigual.

As pessoas que ontem se manifestaram em Brasília e em outras capitais estão insatisfeitas. Talvez nem elas mesmas entendam o porquê. Não tem lugar nesse texto minha hipótese de que a violência da gestão genocida dos últimos anos gerou fissuras profundas na subjetividade desses sujeitos, que acreditaram que jamais seriam abandonados pela ordem capitalista e foram completamente deixados a sua própria sorte. Deixo apenas o registro, para reflexão. E anoto que, do quanto tenho refletido sobre isso, creio tratar-se apenas da “gota d´água”, como diz a música do Chico.

Há todo o ranço de uma racionalidade escravista, que não consegue conviver com o retorno de um metalúrgico ao governo. Depois de tudo, depois de tanto esforço, uma mulher preta catadora entregou a faixa ao Presidente eleito. É demais! Essas pessoas estão revoltadas. Com a vitória de Lula, com discursos contra a miséria e a fome, com as promessas de instauração do Estado Social que nunca tivemos.

Estão insatisfeitas. Conduzidas por uma vontade bestial de eliminar tudo que encontram: pessoas e coisas. Em êxtase quase religioso, filmam, gritam e comemoram cada vidro quebrado, cada bem público destruído. Há aí um sintoma. Chamá-las terroristas não é suficiente nem preciso. Fato é que diante dessas cenas perturbadoras, é quase imediata e incontrolável a vontade de punir. A reação assemelha-se aquela que a greve sempre despertou em fascistas: é preciso bater, jogar bombas, prender todo mundo! Ciente do risco de despertar revolta, me nego a engrossar o coro dos que pedem o rigor da repressão estatal contra os manifestantes. Antes que parem de ler o texto, revoltados com a aparente condescendência com a destruição do patrimônio público em Brasília, deixo claro que não concordo com nada do que ocorreu ontem.

Apenas insisto: olhemos para o revertério. Se eles estão rompendo com a ordem, não seremos nós a assumir a postura de algozes, a partir da lógica do inimigo. Até porque essa lógica punitivista voltará a ser utilizada contra estudantes e trabalhadores grevistas, na primeira esquina do caminhar da história. Não temos o direito de ser ingênuas. Basta ver as manifestações dos representantes dos diversos poderes do Estado. Seja aqueles que se apressaram em negar seu claro envolvimento no estímulo ao vandalismo, seja os que se arvoraram a evocar a ordem estatal para tranquilizar a sociedade horrorizada. O discurso é de punição. Nós contra eles. Eliminem os baderneiros e que retorne a ordem… do capital.

Há uma semana, o presidente afirmou que “depois do duro desafio que superamos, devemos dizer democracia para sempre”. Não superamos. E é preciso discutir profundamente de que democracia estamos falando. Afinal, as pessoas que ontem protagonizaram cenas bizarras são frutos de pactos sociais que permitem o abismo entre ricos e pobres. Resultado de uma cultura colonialista, que recalca a ideia de que existem diferentes tipos de pessoas: as que devem comandar e as que não podem ousar viajar para a Disney ou andar de avião. São o resultado de uma educação pública precarizada, da completa ausência de discussão crítica acerca da nossa cultura escravista. Elas não estavam lá apenas pelo patrocínio. Acreditam realmente na necessidade de destruir e se sentem aterrorizadas pela possibilidade de mudança.

É urgente compreender os sinais de um sistema que se esfacela diante de nós. Não há democracia sem conhecimento, sem discussão e escolha coletiva daquilo que importa. Sem superação da lógica de que nós somos ou não somos importantes para eles. Afinal, quem são eles? Quem somos nós? Nós queremos a ordem e eles fazem baderna? Nós queremos continuidade ou ruptura?

Lula foi feliz ao afirmar que pretende governar para todas as pessoas. É necessário, então, que se compreenda, com urgência, o que isso significa. Reduzir desigualdades é muito diferente de combater a miséria. É atuar para efetivamente impedir que pessoas tenham fortuna, enquanto outras adoecem e morrem de fome. É pensar de modo diverso a produção e distribuição de alimentos e remédios. É permitir que todas as pessoas tenham um lugar decente onde morar, roupa para vestir, escola para estudar. É discutir criticamente as bases de uma sociedade, para a qual o simples anúncio de algum compromisso com proteção social deixa o “mercado nervoso”. Essa ordem, mesmo quando travestida de democrática, nunca foi efetivamente solidária. E, se por algum tempo serviu (ou enganou) quem se iludiu “não olhando para cima”, como se isso fosse suficiente para evitar o caos, fato é que nem para essas pessoas serve mais. Eis algo importante para aprendermos e refletirmos, com o triste episódio de ontem.

Não se trata de evitar a responsabilização. É o exato contrário. Afinal, enquanto anuncia-se a quantidade de pessoas presas em Brasília, Jair Bolsonaro segue em férias fora do Brasil. Sergio Moro, Pazzuelo e Damares iniciam tranquilamente seus mandatos. E esses são só poucos exemplos. Responder com amor ao ódio é assumir as rédeas de um futuro que ainda está por vir.

Para além da ação imediata e necessária, de apuração e responsabilização dos verdadeiros mentores dos atos de ontem, compreender suas causas e enfrentá-las. Isso significa, de forma imediata e objetiva: instaurar uma Comissão da Verdade; processar e julgar Bolsonaro e seus cúmplices; desapropriar as terras dos empresários que financiaram a balbúrdia; taxar grandes fortunas; distribuir alimento; apostar em uma educação amorosa, crítica e transformadora. E não cair em ciladas maniqueístas.

A grande lição desse domingo foi a de que a alteração dos atores e atrizes do jogo institucional é algo realmente importante, mas não é suficiente. Ou assumimos compromisso real e profundo com uma transformação radical da sociedade ou estaremos fadadas a encenar esse mesmo jogo, ora punindo, ora apanhando. E, com certeza, apanhando bem mais que punindo.

Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária.

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