Em 1968, com apenas 20 anos, José Ibrahim (1947-2013) liderou um dos mais audaciosos protestos contra a ditadura militar. Foi preso, torturado e perseguido. Desde então, seu nome esteve sempre na linha de frente do movimento sindical brasileiro.
Por André Cintra e Carolina Maria Ruy
Por sua natureza, os movimentos organizados da sociedade – como o sindical, o estudantil e o comunitário – não são espaços privilegiados para consagrações individuais. Quando a associação de pessoas com objetivos comuns leva a conquistas e avanços, o que sobressai é justamente a força da união – o princípio do “herói coletivo”. A despeito disso, certas lideranças chegam a protagonizar batalhas tão singulares, tão marcantes, que acabam por personificar uma determinada luta, um momento histórico, o sentido de seu movimento.
Este foi o caso de José Ibrahim, que morreu há dez anos, em 2 de maio de 2013, depois de se dedicar por quase 50 anos à causa dos trabalhadores e do povo brasileiro. Em 1968, ao liderar uma audaciosa e surpreendente greve contra o regime militar (1964-1985), Ibrahim deixou de ser “apenas” o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e se converteu num dos inimigos declarados da ditadura. Com apenas 20 anos, estava no centro da luta política nacional. Mas sua vida pública começara anos antes. “Continuo de esquerda, com minha visão de socialismo democrático”, afirmava em 2011. “Não abro mão dos princípios da luta pela justiça, pela igualdade, pelo direito de todos os brasileiros à cidadania.”
Quando Ibrahim nasceu, em 3 de setembro de 1947, sua terra natal, Osasco, ainda era um bairro de São Paulo. Aos poucos, a região passou a se destacar como polo industrial e a buscar sua emancipação. Foi em meio a esse processo que, em 1961, aos 14 anos, Ibrahim ingressou na maior fábrica metalúrgica local, a Cobrasma (Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários). O tempo de Ibrahim era dividido entre o trabalho na indústria e os estudos no Ginásio Estadual de Presidente Altino. Segundo ele, sua formação política se baseou na influência de professores de esquerda no curso colegial.
Em 1962, um plebiscito selou a vitória do movimento emancipacionista de Osasco, que se tornou um município. No ano seguinte, era fundado o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Osasco. Lideranças da nova entidade frequentavam o bar do pai de Ibrahim – o que aproximou o jovem metalúrgico do movimento. Ibrahim circulou entre grupos políticos de esquerda de Osasco, como o Partido Comunista, o antigo PTB e correntes progressistas da Igreja Católica. Quando ocorreu o Golpe de 1964, já era sócio do sindicato, embora realizasse, conforme suas próprias palavras, um trabalho de “formiguinha”.
Sob a ditadura, o sindicato – que nasceu combativo, com forte perfil político – foi uma das primeiras entidades a sofrer intervenção e ter suas lideranças presas. Ibrahim percebeu que era preciso juntar o “Grupo de Esquerda de Osasco” e reagir. O sindicato estava vigiado, e o grupo teria de pensar novas formas de representação dos trabalhadores. “Como os metalúrgicos tiveram de esperar para retomar o sindicato, a saída foi a comissão de fábrica. A primeira delas surgiu em 1965, na Cobrasma, e foi presidida por mim. Depois vieram embriões de comissões em outras fábricas de Osasco”, resumiu.
Em 1967, já havia comissões atuantes na Braseixos e na Lonaflex, entre outras empresas. O próximo passo foi disputar o comando do sindicato. A gestão conservadora de Henos Amorina não ousava enfrentar a ditadura. No mesmo ano, o Grupo de Esquerda lançou uma chapa de oposição, que quase venceu a disputa já no primeiro turno – faltaram apenas 60 votos. Mas, antes do segundo turno, Amorina retirou sua chapa da disputa, e oposição, encabeçada por Ibrahim, assumiu o sindicato.
A conjuntura, entretanto, não era favorável. Sedes de entidades estavam destruídas ou tomadas, e lideranças eram substituídas à força por dirigentes alinhados ao regime. A Lei Nº 4330/64, conhecida como Lei da Greve, dificultava paralisações de qualquer natureza. Sindicalistas eram enquadradas como “subversivos” na Lei de Segurança Nacional. Ainda assim, havia meses que Ibrahim vislumbrava a deflagração de uma greve contra o regime. Várias organizações – entre elas, a dos metalúrgicos de Osasco – já haviam criado o Movimento Intersindical Anti-Arrocho (MIA).
Foi então que irrompeu 1968 – o ano em que, segundo a filósofa Olgária Mattos, “o desejo revolucionário era maior que a situação revolucionária”. Em março, uma paralisação mobilizou 16 mil metalúrgicos de Contagem (MG), enquanto o enterro do estudante Edson Luís, assassinado pelo regime, levou mais de 100 mil às ruas do Rio de Janeiro. Já em 1º de maio, a celebração do Dia do Trabalhador na Praça da Sé, em São Paulo, acabou em confronto – o governador Abreu Sodré teve de sair às pressas do ato.
A greve em Osasco foi, enfim, marcada para 16 de julho, com o apoio de diversos sindicatos – como os metalúrgicos de São Paulo, da Baixada Santista, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, além dos estivadores do Rio. Àquela altura, 3 mil metalúrgicos de Osasco já estavam organizados no local de trabalho, por meio das comissões de fábrica. Além do contrato coletivo de trabalho e do reajuste salarial, o movimento cobrava liberdade sindical e o fim da Lei de Greve. “Depois do Golpe de 1964, os sindicatos não combatiam nem a empresa, nem o regime”, afirmava Ibrahim.
Às 8h45 do dia 16, quando a sirene tocou, a histórica greve de Osasco teve início, com a ocupação da Cobrasma. Iniciada entre os funcionários de limpeza e acabamento, a paralisação atingiu, em poucos minutos, outros setores da fábrica — e, na sequência, mais empresas de Osasco. Para coibir a ação policial, os manifestantes impediram a saída de 15 engenheiros e 30 chefes de serviço. Logo no início da ocupação, o governo contatou o Comando Geral da Greve, e a negociação parecia fluir. Mas, no mesmo dia, a greve foi declarada ilegal pela Delegacia Regional do Trabalho. Quando anoiteceu, a polícia cercou o sindicato e invadiu as empresas ocupadas. Nos confrontos, houve feridos dos dois lados e mais de 30 manifestantes presos. Três dias depois, o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, indicou os novos interventores do sindicato, que liquidaram as comissões de fábrica.
A exemplo de dezenas de outras lideranças, Ibrahim foi perseguido e torturado, teve a casa invadida e passou para a clandestinidade. No final de 1968, o governo baixou o Ato Institucional nº 5 (AI-5) e endureceu o regime, com o fechamento do Congresso e a proibição de manifestações políticas. Acolhido pela Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Ibrahim foi instalado num “aparelho” em São Paulo. Em sigilo, ia por diversas vezes ao sindicato – até ser preso, em 1969, no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna). De lá só sairia em setembro, quando foi um dos 15 presos políticos libertados em troca do fim do sequestro do embaixador norte-americano no Brasil, Charles Elbrick. Poucos dias depois de completar 22 anos, partiu para o exílio, permanecendo por dez anos fora do País.
Vivia-se um período sombrio. De 1964 a 1979, houve intervenção militar em 1.206 entidades. Cerca de 10 mil lideranças sindicais foram presas, torturadas, destituídas ou cassadas. A situação começou a mudar apenas em 1978, com as greves lideradas pelo presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Luiz Inácio Lula da Silva. Na primeira delas, em maio, 3 mil funcionários da Scania se mobilizaram. Em duas semanas, já eram 50 mil operários de 30 empresas de São Bernardo. Passado um mês, mais de 500 mil trabalhadores tinham aderido em todo o estado. “Mas não haveria essa movimentação no ABC se não fosse aquela greve em Osasco”, dizia Ibrahim.
O fato é que o povo pressionava cada vez mais a ditadura. Além da efervescência sindical, o Movimento contra a Carestia também ganhava adesões. As ruas estavam tomadas, e o regime teve de ceder, suspendendo o AI-5 e promulgando a Lei da Anistia. Em 1979, as novas condições viabilizaram a volta de Ibrahim ao Brasil. Mais de 5 mil companheiros foram ao Aeroporto de Congonhas para esperar seu desembarque – que, por razões de segurança, foi transferido para Viracopos, em Campinas. “Quando voltei do exílio, o Henos Amorina – que ainda era presidente do sindicato – alugou alguns ônibus para levar o pessoal de Osasco me recepcionar”, relatou Ibrahim.
Na bagagem, o sindicalista trouxe um trunfo: “Eu tinha nome e trânsito no movimento sindical internacional. Em dez anos no exílio, trabalhei muito com centrais sindicais, principalmente da Europa. Era bastante conhecido e tinha o respeito das centrais desses países – França, Portugal, Itália, Espanha, Bélgica, etc.”. De vota ao Brasil, Ibrahim se aliou a Lula e a outros sindicalistas, com os quais ajudou a fundar o PT em 1980 e a CUT em 1983. As divergências, porém, levaram ao rompimento em 1986.
Ibrahim – que, ainda nos anos 80, se aproximou do PDT e do ex-governador Leonel Brizola – queria algo novo. “Existiam condições de a gente criar uma opção para o movimento sindical fora dessa dicotomia ‘revolucionários x pelegos’. Havia espaço – e uma necessidade – de construir outra via.” Junto ao presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, Luiz Antonio Medeiros, e outras lideranças, articulou, entre 1990 e 1991, a Força Sindical, que propunha o chamado o “sindicalismo de resultados”.
Com a fundação da central, Ibrahim foi seu primeiro secretário de Relações Internacionais. A simpatia do presidente Fernando Collor de Mello pela Força fez de Ibrahim uma das lideranças mais atacadas. Mas ele não desistiu, nem mesmo quando foi o encarregado de debater os rumos do sindicalismo com ex-companheiros de CUT, como Jair Meneguelli e Vicentinho, que o acusavam de capitulação. “Eu os encarava e dizia: ‘Meneguelli, você nasceu ontem. Vicentinho, você nasceu ontem. Onde é que vocês estavam quando havia ditadura aí? Eu tinha 20 anos e estava brigando – já era presidente do sindicato. Onde é que vocês estavam escondidos?’. Eles queriam morrer.”
Às vésperas da fundação da Força, Ibrahim reencontrou, ainda, o coronel Jarbas Passarinho, ministro da Justiça. O mesmo homem que tanto perseguiu Ibrahim em Osasco agora queria tomar um café com sua vítima – e na presença de Collor. Ibrahim topou, mas não passou recibo:
– Presidente, este rapaz era um menino na época e agitou tudo aquilo. Foi ele que me deu um trabalho, que ocupou as fábricas em Osasco – disse Passarinho.
– E o senhor foi quem me cassou! – rebateu Ibrahim.
– Mas, naquela época, tinha a lei…
– Eu sei. Era da ditadura, mas era a lei que existia. Mas eu não aceitava aquela legislação arbitrária. Essa era a questão. E me confrontei com os governos, com a lei. Não tínhamos liberdade sindical, ministro. Você sabe disso.
– Isso foi numa época passada, e eu te respeito muito. Agora vocês estão aí construindo essa central, e nós queremos ter um diálogo permanente com vocês.
Nos anos 2000, depois que uma dissidência da Força deu origem à UGT (União Geral dos Trabalhadores), Ibrahim mudou, mais uma vez, de central. Na nova entidade, assumiu a função de secretário de Formação Política. Em 2011, filiou-se ao recém-fundado Partido Social Democrático (PSD) – a legenda idealizada pelo então prefeito paulistano, Gilberto Kassab.
Mas o tema que mais parecia lhe motivar, nos últimos meses de vida, era a memória do movimento sindical e, particularmente, o grupo de trabalho “Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical”, instituído pela Comissão Nacional da Verdade. “Deram um jeito, aprovaram essa proposta e até me indicaram: ‘Já que você deu a ideia e é um dos caras que passaram pela repressão, fica você de coordenador’. Eu falei: ‘Está certo. Só que vamos entrar em contato com as outras centrais e com outros grandes sindicatos para fazer um trabalho unitário’”.
Ao mesmo tempo, Ibrahim lutava pelo resgate da história de sua primeira entidade – o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco. “Foi só recentemente que se fez um levantamento sério com quem participou do período, as comissões de fábricas, os dirigentes sindicais que foram cassados em 1968. Chamaram todo mundo para tomar depoimentos e fizeram um vídeo muito bonito, muito bem-feito. Isso está documentado lá, mas só foi feito agora, porque eu e outros companheiros fizemos pressão também.”
Em 28 de abril de 2013, Ibrahim foi à casa de Gilberto Kassab, ao lado do presidente da UGT, Ricardo Patah, para um ato simbólico, em que o ex-prefeito lhes entregou as chaves da nova sede do PSD Movimentos.
Três dias depois, participou 1º de Maio Unificado, na Praça Campo de Bagatelle, zona norte paulistana. A celebração do Dia do Trabalhador foi seu último compromisso público – sua derradeira atividade sindical. Na madrugada de 2 de maio de 2013, José Ibrahim faleceu enquanto dormia, aos 65 anos. Sua excepcional trajetória em defesa dos trabalhadores e do Brasil havia chegado ao fim.
André Cintra é jornalista
Carolina Maria Ruy é coordenadora do Centro de Memória Sindical
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