Valdete Souto Severo. Foto: Reprodução Fundação de Economia e EstatísticaEsta entrevista exclusiva com a magistrada gaúcha Valdete Souto Severo dá continuidade ao debate acerca do tratamento dispensado às vítimas de violência de gênero, especialmente violência sexual, nos tribunais de justiça, em virtude do fato de que muitas denunciantes vêm sendo humilhadas por advogados e juízes em audiências.
A primeira matéria Como tem atuado o Judiciário em processos sobre violência de gênero? trouxe uma visão das mulheres do movimento sindical acerca do problema que se avoluma, principalmente após os seis anos de predomínio do discurso do ódio e da violência de gênero para insuflar a violência e conter os avanços conquistados a duras penas como, por exemplo, a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio.
Para Valdete Souto Severo, para mudar toda a naturalização da violência de gênero é preciso entender que isso “passa pela criação dos filhos, passa inclusive pelo modelo de relações afetivas, de como compreendemos as relações afetivas. Porque as mulheres podem se abraçar, se beijar e os homens não têm essa possibilidade, na maioria, embora hoje já esteja muito diferente, mas os meninos geralmente são criados para terem um distanciamento afetivo dos seus amigos. Eles só podem manifestar contato físico se estão jogando futebol, por exemplo”.
Passa por combater tenazmente a cultura do estupro como ideologia do patriarcado, que arruma subterfúgios para justificar o ódio e a violência de gênero, de raça e de classe. Como argumentar que a roupa usada pela vítima provocou o crime.
“O que está por trás desse argumento de que a roupa da vítima justifica a violência ou atenua a gravidade do ato violento é justamente a ideia de que o corpo feminino é um corpo violável; porque se não fosse um corpo objeto do desejo e passível de penetração no sentido mais amplo da palavra, de invasão, a nudez e a forma de vestimenta jamais seriam relevantes para análise de uma conduta violenta”.
Valdete é pós doutora em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Direitos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). É professora de direito e processo do trabalho na UFRGS, É juíza do trabalho da Quarta Região de Porto Alegre, pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital – USP e UFRGS e membra da Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social.
Leia a entrevista na íntegra com Valdete Souto Severo:
Desde o argumento de “estupro culposo”, utilizado para absolver o acusado de estupro, denunciado pela blogueira Mariana Ferrer em 2018, o que mudou na maneira como o Judiciário trata as vítimas em processos sobre violência de gênero? Inclusive o episódio serviu para a formulação da chamada Lei Mariana Ferrer 14.245/2021.
Como sou da área trabalhista, não posso falar muito dessa lei, que é de outra área, mas pelo que tenho acompanhado das decisões, inclusive no núcleo de gênero da UFRGS e pela realidade da Justiça do Trabalho, parece que a mudança tem sido pequena, porque assim como há um movimento para que o Judiciário reconheça a perspectiva de gênero, inclusive com protocolo do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e com espaço para ocorrer essa discussão nos ambientes judiciários e nas escolas judiciais, na verdade, há uma resistência, uma espécie de contraofensiva no discurso que aparece muitas vezes, como recentemente aconteceu num caso envolvendo um presidente de Tribunal do Trabalho, que fez um comentário considerado machista em relação a uma advogada. Então, não sei se teve uma mudança muito grande.
Como explicar que, mesmo com os trabalhos importantes do Judiciário em relação à violência de gênero, muitos integrantes do judiciário agem com machismo e humilham vítimas em audiências?
O que se tem estudado muito, porque na realidade quando se fala em violência de gênero, também estamos falando na necessidade de mudança de postura na relação homem-mulher dentro de uma sociedade cuja cultura é extremamente patriarcal, machista.
Isso ocorre desde a forma como criamos meninas e meninos. Os brinquedos que são dados, o comportamento que se espera daquilo que se diz para as meninas: “sempre de perna fechada”, “não grita, tu és uma moça”, “te comporte como uma mulher”. E para os meninos: “Não leve desaforo para casa”, “briga, tu és homem” etc.
Vivemos em uma sociedade que nos constrói para sermos todos, homens e mulheres, extremamente machistas. Por isso, algumas feministas chamam de cultura do estupro a imposição de um comportamento de submissão à mulher.
A violência começa com o desrespeito ao não dito por uma mulher?
Tem o movimento Não É Não das mulheres justamente para mostrar que o não atendimento do desejo feminino, dentro de uma perspectiva que não é necessariamente de uma intenção violenta, mas é uma perspectiva na qual os homens são criados para sempre insistir. Com isso, não estou desculpando a conduta masculina, mas acho bem importante tirarmos do sujeito pensar que a violência acontece apenas porque temos homens violentos ou perversos, mas compreender que essa violência de gênero, assim como outras violências, a violência de prática racista, entre outras, acontece porque há uma cultura, que inclusive exige dos homens uma postura violenta.
Rita Segato (antropóloga e feminista argentina) fala em mandato de violação. Ela diz que nós criamos os nossos meninos quase como se eles fossem obrigados a agir de forma violenta em relação às mulheres e a considerar que um não é um talvez, ou é um charme, que a mulher está fazendo para que ele insista um pouco mais. Inclusive para que diante de seus pares, ou até mesmo da própria mulher, ele se sinta menos homem ou não atendendo ao que se espera dele numa sociedade patriarcal.
Afirmar que a violência começa com a desobediência não tem sido muito importante para os movimentos feministas exatamente em razão da necessidade de reconhecer que essa cultura existe e que ela precisa ser modificada.
É muito difundida a ideia de que a roupa usada pela vítima justifica a violência, mesmo não sendo. O que pensa disso?
É impressionante que alguém ainda se refira à roupa que uma pessoa está usando como forma de atenuar ou justificar uma violência em qualquer nível. Porque a violência não se justifica. Uma mulher poderia andar nua na rua; numa sociedade minimamente saudável ela teria acolhimento. Alguém que perguntasse se ela estaria com frio ou se ela quereria ou não vestir uma roupa. Ela teria sua escolha respeitada.
O que está por trás desse argumento de que a roupa da vítima justifica a violência ou atenua a gravidade do ato violento é justamente a ideia de que o corpo feminino é um corpo violável, porque se não fosse um corpo objeto do desejo e passível de penetração no sentido mais amplo da palavra, de invasão, a nudez e a forma de vestimenta jamais seriam relevantes para análise de uma conduta violenta.
Só se torna relevante porque temos uma cultura pela qual o corpo da mulher é desde sempre objetivado como algo a ser invadido e, portanto, a roupa, uma saia mais curta ou um decote maior, é lido nesse discurso hegemônico, digamos assim, como um convite à invasão e é isso que precisa mudar.
Compete a um juiz, em uma audiência, perguntar sobre a roupa que a vítima usava?
A roupa não poderia de forma alguma ser argumento de análise num caso de violência, de que de algum modo justificasse a violência a um corpo feminino ou feminilizado, que são os corpos alvos de violência geralmente.
Não compete ao juiz evidentemente perguntar sobre a roupa da vítima porque, quando uma vítima de violência que participa de um ato judicial, ou qualquer testemunha de um fato, partícipe de um fato, participa de um ato em que precisa prestar informações, pois na verdade essa pessoa atualiza os fatos.
Quando narramos uma história atualizamos os fatos. O que quero dizer com isso é que uma vítima de violência, quando precisa narrar o que aconteceu, ela sofre novamente os efeitos psicológicos da violência. Vários estudos demonstram isso.
É preciso que o Judiciário tenha não apenas a consciência do que está em jogo, questão da estrutura patriarcal que está em jogo quando se fala em violência de gênero, mas também que estude para compreender essas implicações psíquicas do ato de fala de uma vítima de violência numa audiência, às vezes diante do agressor. Então não é só que não compete ao juiz perguntar com que roupa a vítima estava, mas compete ao Judiciário compreender, estudar, ter realmente condição técnica de conduzir a audiência sem que ela se torne um sofrimento ou uma nova violência.
O que vemos acontecer é isso. O depoimento da vítima acaba se tornando uma nova violência e dessa vez infringida pelo Poder Judiciário quando faz perguntas inoportunas ou perguntas quando tem o não dito.
Esse tipo de pergunta contribui para a tentativa de responsabilizar a vítima pelo crime?
Quando alguém pergunta “qual era a roupa que estava usando?” ou “fostes ao quarto dele livremente?” ou “permitiu que ele te beijasse?”, o que na verdade está por trás é o não dito, que todos os envolvidos nesse momento, que é a audiência, vão compreender que existe uma desconfiança, já que a vítima de algum modo contribuiu para a agressão, ou seja, ela foi responsável pela violência que ela mesma sofreu.
Podemos fazer uma analogia com aquele pai ou mãe que bate no filho e diz que está batendo porque a criança o obrigou a agir assim, que está sofrendo mais do que a própria criança que sofre a agressão. Na verdade, é esse pai ou mãe que escolheu a violência para “educar” o filho.
A violência é do agressor não da vítima. Da mesma forma, a vítima de uma violência sexual não participa do ato da violência e não importa a roupa que ela usa, não importa se ela foi até o quarto, não importa se ela disse sim no início e depois ela disse não. É preciso que se respeite a sua vontade porque precisamos deslocar esse discurso para um outro lugar, que é o lugar em que os corpos não podem ser violáveis, não importa de que corpo estou falando, mais frágil fisicamente ou objeto desse imaginário social de sedução como é o corpo feminino. Precisamos construir uma cultura de que esse corpo não seja violável.
Portanto, se a moça está com uma roupa sensual, sexy, se ela foi até o quarto, se ela inicialmente disse sim e em algum momento disse não, essa interdição precisa ser suficiente para que não haja a partir daí nenhuma incursão sexual, senão vai ser violência passível de aferição e de consequências de aferição e de consequências jurídicas.
O que fazer para mudar isso?
O primeiro passo é compreendermos que se trata de uma estrutura social. E até o Direito está fundado numa ideia de que de algum modo há uma relação de diferença de posição social e de hierarquia entre homens e mulheres, quando até a década de 1940-1950 era estabelecida a necessidade de autorização do marido para a mulher trabalhar fora de casa ou quando até hoje se permite que a mulher adote o sobrenome do marido como se ela estivesse sendo adquirida como propriedade desse homem.
Então, se não estudamos e não compreendemos que há uma estrutura social que nos atravessa, que compõe práticas cotidianas muito sutis, às vezes de reforço dessa naturalização da violência contra os corpos femininos, a própria ideia de que entre duas pessoas casadas a relação sexual é uma obrigação entre elas. Se não entendemos o que isso significa na formação dessas racionalidades, nas pessoas que ocupam o Poder Judiciário, dificilmente vamos mudar a postura do Judiciário, mesmo tendo protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que são avanços importantes, mas é preciso, para além disso, compreender que se trata de uma cultura no âmbito sobre a forma como as crianças são criadas, na forma como se discutem essas questões na escola, na forma como os padrões de comportamento são exigidos nos diferentes âmbitos da vida social.
Se não trabalharmos nessa questão também, dificilmente o Judiciário vai alterar, especialmente quando percebemos que o Judiciário, sobretudo nos órgãos de cúpula, ainda são compostos em sua maioria por homens, e homens brancos.
Essa violência ocorre também com as trabalhadoras do Judiciário?
Há muitos casos de violência de gênero no âmbito do Poder Judiciário. É bem impressionante para mim que não existe uma situação em que se fale sobre assédio sexual em qualquer ambiente, seja entre juízas, entre servidoras, entre alunas, entre terceirizadas, entre sindicalistas, na qual exista uma única mulher que não tenha uma experiência de violência de gênero. Todas têm. Todas têm mais de uma experiência e muitas têm experiências bastante escabrosas, bastante violentas e a maioria delas silencia, especialmente quando estão em cargos de uma hierarquia social mais reconhecida.
É muito comum advogadas, estagiárias em escritórios e juízas que passaram por situações de violência de gênero mais ou menos graves, escolherem silenciar porque ficariam expostas, porque teriam que provar por que poderiam ter a sua situação profissional atrapalhada.
Esse é um problema muito grave e muito silenciado, por isso é muito importante falar sobre isso.
Ter curso sobre as questões de gênero nas universidades ajudaria a resolver?
Seria mais interessante do que ter curso sobre os procedimentos, mudar a forma do ensino desde a educação infantil, e nas universidades ter essa pauta como uma pauta que atravessa todas as matérias e não só no Direito, mas em todos os cursos. Falar de gênero na Medicina, na Sociologia, na Filosofia, enfim em todos os cursos.
É fundamental como isso aparece. Porque isso é tão forte em sociedades capitalistas, que de algum modo, pelo menos, segundo alguns autores, como é o caso da Silvia Federici (filósofa e ativista feminista italiana), da própria Rita Segato e de algumas outras autoras, é um modelo de sociedade para o qual o machismo é funcional, o sexismo é funcional, servem para manter a estrutura intacta.
Por isso, estudar esse tema como algo obrigatório e que atravessa, não como uma disciplina própria, mas que atravessa todas as matérias, é um passo fundamental para podermos começar a desconstruir essa teia de relações violentas, porque, na verdade, nós reconhecemos e tratamos a violência de gênero ainda que ela se torne um feminicídio, uma agressão, uma evocação da Lei Maria da Penha, um assédio sexual no ambiente do trabalho. Mas não tratamos da violência de gênero em regra naquelas práticas pequeninas, como eu disse anteriormente da criação dos filhos, da conduta esperada das meninas e dos meninos, da repressão da sexualidade, da imposição de sexualidade em manifestações dos adolescentes.
Meninos que se comportam de um determinado jeito, como aqueles garotos que se masturbaram após um jogo num ginásio de esportes em uma competição universitária foram expulsos, mas foram reintegrados. Deveríamos pensar, como seria se fossem as meninas que tivessem agido dessa forma?
Há uma consideração diferente das condutas e se não alterarmos isso, dificilmente alteraremos o pensamento de juízes e juízas, que são de alguma forma produto desse modelo de organização social.
O que fazer então?
Isso passa por tantas coisas. Passa pela criação dos filhos, passa inclusive pelo modelo de relações afetivas, de como compreendemos as relações afetivas. Porque as mulheres podem se abraçar, se beijar e os homens não têm essa possibilidade, na maioria, embora hoje já esteja muito diferente, mas os meninos geralmente são criados para terem um distanciamento afetivo dos seus amigos. Eles só podem manifestar contato físico se estão jogando futebol, por exemplo.
Dessa forma, se cria uma lógica de um corpo a ser invadido e de um corpo a ser preservado, reforçado pela questão da força física e que acaba se revelando uma prática de violência. E é essa postura que precisamos mudar.
A violência de gênero cresceu muito com a extrema-direita no poder. Vivemos o resquício desses anos de discurso insuflado de ódio ao feminino?
Eu acho importante quando se fala em violência de gênero, que, no caso do Brasil, embora não tenhamos muitos estudos sobre isso e talvez possa se afirmar que melhoramos nesse aspecto, na possibilidade que temos de discutir esse assunto, de enfrentar esse assunto, mas temos que pensar também que tivemos um governo, do ex-presidente Jair Bolsonaro, em que a violência contra os corpos femininos ou feminilizados era cotidiana nas falas e na prática dele e de seus companheiros, digamos assim.
Poderíamos fazer um artigo com essas falas extremamente violentas ao dizer que prefere ter um “filho morto” a ter um “filho gay” ou de que não estupraria uma outra parlamentar por achá-la “muito feia”, entre tantas outras insanidades. Então a violência de gênero que ocorre no Brasil é um pouco o efeito que agora se nota dessa reação conservadora em algumas situações enfrentadas pelo Poder Judiciário.
Temos um efeito traumático em nível social de exacerbação de um discurso que autoriza a violência de gênero muito forte desde 2016 e mais ainda a partir de 2019.
Eu lembro quando o Temer assumiu depois do golpe que depôs a Dilma, saiu uma capa da revista Veja com uma entrevista com a Marcela Temer, na qual dizia “Bela, recatada e do lar”. Ou seja, ali havia uma inscrição muito forte em termos sociais do modelo de conduta feminina que é esse modelo que se submete. A recatada, veja uma sexualidade reprimida.
Para esse modelo burguês, a mulher tem que ser bela, recatada e do lar, porque tem que se manter na esfera privada. É uma chamada muito simbólica do que desse momento de 2016 até o ano passado representou para o crescimento da violência de gênero no país.
Isso tem que ser colocado na dificuldade que temos ainda hoje para falar, enfrentar e estudar seriamente esse tema.
Marcos Aurélio Ruy é jornalista
Leia também: