Por Carolina Maria Ruy
Em plena ditadura militar a explosão dos festivais de música inspirou muitos jovens a contestarem a repressão política e social. No Terceiro Festival da TV Record, em 1967, o mais emblemático da “Era dos Festivais”, apresentaram-se músicos como Nara Leão, Caetano Veloso, Gilberto Gil e a banda “Os Mutantes”. Ali, com as canções Alegria Alegria e Domingo no Parque, já se formava o embrião do tropicalismo.
No ano seguinte eles se juntaram a Gal Costa, Tom Zé, Capinam, Torquato Neto e ao maestro Rogério Duprat e produziram o Manifesto do movimento tropicalista: o álbum Tropicália ou Panis et Circencis, lançado em julho de 1968 pela gravadora Philips Records (atual Universal Music).
O álbum misturou referências da cultura brasileira com inovações estéticas e cultura pop. Entre suas maiores influências sobressaem-se o Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade em 1928, e o álbum, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, lançado em 1967, que quebrou paradigmas estéticos e musicais, sintetizando a alma da indústria cultural.
A inspiração do Sargento Pimenta fica clara logo na composição barroca da capa, mas isso não tem nada a ver com imitação ou plágio. A referência foi assimilada “antropofagicamente” e deglutida em uma obra própria, identificada com a realidade brasileira.
Do rural ao urbano
O Manifesto fala, sobretudo, da passagem de um Brasil rural para um Brasil mais urbano, no contexto político da Guerra Fria.
Esta passagem fica nítida no gráfico que mostra a população que vivia em cidades e no campo nos anos de 1940 a 1970. Em 1940 apenas 31% da população brasileira vivia em cidades. Com a industrialização promovida por Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, o processo de urbanização se intensificou e, em 1970, mais da metade dos brasileiros já se encontrava em áreas urbanas, cuja oferta de emprego e de serviços, como saúde, educação e transporte, eram maiores.
Os arranjos, que misturam rock e regionalismo, e as letras de Tropicália dizem muito sobre esse processo.
No novo modelo de vida, não apenas mais urbanizado, mas também, americanizado, palavras como “lanchonete”, “sorvete”, “jornal”, “carros”, “asfalto”, assim como termos da língua inglesa, como “made in” e “baby”, passaram a habitar o vocabulário dos brasileiros.
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“O avanço industrial vem trazer nossa redenção”
Metafórico e irônico, o álbum manifestou a identidade deste novo brasileiro habitante das cidades.
Logo no início, na música Miserere Nóbis, Gilberto Gil alerta que “já não somos como na chegada”. Ou seja, não somos mais uma população predominantemente rural, caipira. Mas a ironia é que a modernidade que se instala é também perigosa, porque é desigual. Isto fica claro nos versos: “Tomara que um dia de um dia seja; Para todos e sempre a mesma cerveja; Tomara que um dia de um dia não; Para todos e sempre metade do pão”. Com sacrifício os brasileiros migraram para a cidade levando com eles suas crenças, costumes e o hábito de buscar proteção divina ao se sentirem abandonados à própria sorte: “Miserere-re nóbis; Ora, ora pro nóbis” (Tende piedade de nós / Orai, orai por nós).
Ainda sobre Miserere Nóbis, os versos em latim referem-se às missas anteriores ao Concílio Vaticano II (1962 a 1965). O uso do vernáculo em substituição do latim foi, entre as determinações do Concílio, considerada uma grande mudança. Isto porque as pessoas estavam habituadas à imponência e à dificuldade do latim, mas a maioria não conseguia entender a língua. Com a mudança, a missa passou a ser compreensível para todos.
Em seguida Coração Materno, música gravada originalmente em 1951, por Vicente Celestino, tem um tom obscurantista, religioso, quase “medieval”, em versos como: “Chega à choupana o campônio; Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar; Rasga-lhe o peito o demônio; Tombando a velhinha aos pés do altar”. Coração Materno representa o mundo rural enquanto Lindoneia, ao contrário, mostra a individualidade “renascentista” e a solidão típica das grandes cidades: “Na frente do espelho, sem que ninguém a visse…”.
Parque Industrial e Geleia Geral são as canções do álbum que mais falam do impacto da industrialização e da miscigenação cultural fazendo referências à propaganda, às aeromoças, ao jornal popular, ao bumba-meu-boi, à Jovem Guarda, a Oswald de Andrade, a Frank Sinatra, ao Jornal do Brasil, ao Canecão, ao santo barroco baiano, à miss Brasil, ao carnaval, à TV e à carne seca. Elementos do universo do consumo, a novidade e o frescor do mundo das marcas também são cantados em Baby que, ironicamente, não apenas tem seu nome na língua inglesa como afirma “você, precisa aprender inglês, precisa aprender o que eu sei…”. Na música, ao dizer “você precisa tomar um sorvete, na lanchonete, andar com a gente, me ver de perto, ouvir aquela canção do Roberto”, Gal fala do modo de vida “casual” urbano.
Sobre o “medieval” e o “renascimento”, já apontados em Coração Materno e Lindoneia, Três Caravelas reconta a saga do descobrimento (da América e do Brasil) pelos europeus como que, com ousadia, eles antevissem que o Brasil, ao longo de sua história, se tornasse um gigante miscigenado culturalmente e racialmente. Três Caravelas celebra a criação do Brasil como parte do novo mundo.
Com tom grave, Enquanto seu lobo não vem, descreve uma passeata aludindo às manifestações de protestos contra a ditadura, à clandestinidade e à repressão. Há aqui um detalhe interessante: logo após a frase “vamos passear nos Estados Unidos do Brasil, vamos passear escondidos” toca um acorde da Internacional Socialista. Refere-se ele à polarização EUA X URSS? À repressão ao comunismo?
Para finalizar a apresentação das canções, Mamãe Coragem, Bat Macumba e Hino ao Senhor do Bonfim seguem nesta linha da ruptura com as tradições, sobre a ânsia em descobrir o mundo, com sua antropofagia e sincretismo religioso.
A cara de 68
A sequência das músicas tem um sentido, o que pode parecer estranho em tempos de ipods. Os simbolismos orquestrados pelos tropicalistas estão dispostos desordenadamente no álbum, assim como é desordenado e desequilibrado o tal avanço civilizacional.
De forma criativa e com um sofisticado senso critico, Tropicália ou Panis et Circencis sintetizou o clima de 1968. Um clima marcado por um falso “milagre econômico”, por uma grande oferta de empregos em indústrias, pelo arrocho salarial, por greves, passeatas, ditadura, repressão, pela revolução dos costumes e pela polarização EUA versus URSS.
Carolina Maria Ruy, jornalista, coordenadora do Centro de Memória Sindical