PUBLICADO EM 05 de out de 2020
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Os bandeirantes, caçadores de índios e negros, alargadores do Brasil (Parte I)

Pintura Guerrilhas, de Rugendas

Por José Carlos Ruy

Quem foi Domingos Jorge Velho, o especialista na guerra do mato mobilizado pelo governador da capitania de Pernambuco contra Palmares?

Há um retrato dele, feito em 1903, de autoria do pintor Benedito Calixto, do acervo do Museu Paulista (ou Museu do Ipiranga), em São Paulo, que mostra um homem rijo, bem vestido e apetrechado, com armas, botas e um vistoso chapéu de abas largas. Um misto de patriarca e autoridade militar, seu semblante combina o olhar severo e as barbas bonachonas de um herói civilizador. É uma bela imagem, mas tem o defeito de não corresponder à verdade histórica.

Benedito Calixto, dois séculos depois da existência de Domingos Jorge Velho (que viveu entre 1641 e 1705) , deu forma a um personagem imaginário da elite e dos historiadores paulistas que criaram – desde a segunda metade do século 19, na esteira da ascensão econômica e política de São Paulo – a lenda dos bandeirantes civilizadores e construtores da exuberância territorial do Brasil moderno.

É uma imagem que, diz o historiador Carlos Henrique Davidoff, “foi construída cuidadosamente pela maior parte dos estudiosos das bandeiras, nas três primeiras décadas do século 20, período áureo destes estudos em São Paulo”.

Essa imagem, uma elaboração ideológica, partiu do fato real de que, andando pelo interior da América do Sul, os bandeirantes conquistaram o território que hoje forma o Brasil, mas a história é mais complexa.

São Paulo daquela época estava à margem dos principais centros coloniais; seus moradores se especializaram na caça de homens – índios e negros fugidos – e, mais tarde, na busca de metais preciosos.

A história de Domingos Jorge Velho reúne, em sua figura, a do miliciano que, à frente de tropas formadas por exploradores brancos (ou mestiços de branco e índio), que comandavam legiões de mamelucos, índios aliados e mesmo negros escravizados, atravessaram o território, em todas as direções, com o objetivo de caçar índios para escravizar, lutar contra quilombos ou encontrar minerais preciosos.

Sua imagem não correspondia à daquele homem retratado por Benedito Calixto, e muito menos àquela das grandes estátuas de mármore que adornam as escadarias do Museu do Ipiranga.

Os paulistas eram então pobres e rústicos; o historiador Charles Boxer garante que não há evidências históricas que confirmem a existência da figura lendária que os historiadores paulistas criaram para homenagear seus antepassados. Ao contrário, os bandeirantes – diz Boxer – andavam descalços, e não com as elegantes botas de montaria que aparecem nas estátuas e imagens, como a deixada por Benedito Calixto. Vestiam camisa, ceroula, e gibão de algodão acolchoado para proteger-se das flechas. E, muitas vezes, a acreditar nas cartas escritas pelos procuradores de Domingos Jorge Velho ao rei para reclamar o pagamento pelo serviço prestado com a destruição de Palmares, chegavam a andar seminus.

Há testemunhos eloquentes daquela época que descrevem os bandeirantes de maneira contrária à mitologia reforçada no século 20. Como uma carta ao rei de Portugal, de 19 de julho de 1692, do governador do Estado do Brasil, Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, onde descreveu os saques cometidos por Francisco Dias de Siqueira em aldeias indígenas no Maranhão: “Os paulistas saem de sua terra e deitam várias tropas por todo o sertão e nenhum outro intento levam mais que cativarem o gentio da língua geral, que são os que já estão domesticados, e não se ocupam do gentio de corso porque lhes não servem para nada; assim que o intento destes homens não é o serviço de Deus nem o de Vossa Majestade e com pretextos falsos, passam de uns governos para outros e se lhes não fazem mostrar as Ordens que levam. Enganam aos governadores, como este capitão Francisco Dias de Siqueira fez ao governador do Maranhão Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, dizendo-lhe que ia a descobrir aquele sertão por minha ordem, que tal não houve nem tal homem conheço, e com este engano pedem mantimentos, armas e socorro e depois com elas vão conquistar o gentio manso das aldeias e o gado dos currais dos moradores. Com que estes homens são uns ladrões destes sertões e é impossível o remédio de os castigar, porque se os colherem, mereciam fazer-se neles uma tal demonstração que ficasse por exemplo para se não atreverem a fazer os desmandos que fazem. Assim que me parece inútil persuadi-los a que façam serviço a Vossa Majestade porque são incapazes e vassalos que Vossa Majestade tem rebeldes, assim em São Paulo, onde são moradores, como no sertão, donde vivem o mais do tempo; e nenhuma Ordem do governo geral guardam, nem as leis de Vossa Majestade”.

Depois da destruição do quilombo de Palmares, Domingos Jorge Velho teve que enfrentar outra luta, agora com a oligarquia pernambucana, para que o contrato feito com o governo colonial e que lhe dava direito às terras do quilombo, fosse cumprido. Bateu-se com interesses muito fortes. Afinal, um dos comandantes da luta contra Palmares, junto com ele, fora o capitão-mor Bernardo Vieira de Melo que, juntamente com outros pernambucanos notáveis, queria sua parte no botim. Foi uma luta demorada, só concluída em 1716, após a morte do bandeirante, quando sua viúva recebeu finalmente em sesmaria um pedaço de terra na região.

O bispo de Pernambuco, D. Francisco de Lima, que conheceu Domingos Jorge Velho pessoalmente, deixou dele uma descrição pouco lisonjeira: “este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado; quando se avistou comigo trouxe consigo língua (isto é, um intérprete), porque nem falar sabe, nem se diferencia do mais bárbaro tapuia”.

O governador-geral de Pernambuco, Caetano de Melo e Castro confirmou o bispo, dizendo tratar-se de gente bárbara, que “vive do que rouba”.

Isto é, disse o bispo, o bandeirante não falava português (ou falava mal…), mas a língua geral, o nheengatu – que aliás era a língua corrente em São Paulo até 1755 (quando o governo português tornou obrigatório o uso do português).

O nheengatu, que os bandeirante falavam, deixou forte marca não só no português brasileiro, mas sobretudo nos nomes dados a cidades, rios e outros acidentes geográficos, como Guanabara, Itanhaém, Peruíbe, Jundiaí, Piracicaba, Sorocaba, Taubaté, Guaratinguetá, Mogi das Cruzes, São Luiz do Paraitinga, Tatuapé, Itu, Sapopemba, Mantiqueira, Ibirapuera, Paquetá, Anhangabaú – a lista é infindável.

A segunda parte do artigo será publicada na próxima semana.

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