PUBLICADO EM 28 de jul de 2023
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O trabalho infantil do início do capitalismo está voltando aos EUA

Entre 1908 e 1912 o fotógrafo Lewis Wickes Hine registou rostos de crianças de todas as idades trabalhando. Algumas de apenas cinco anos, como a desta foto: Manuel na frente de uma pilha de conchas em seu segundo ano de trabalho, no Mississippi, 1911.

Por Steve Fraser

O trabalho infantil era comum na América urbana e industrial na maior parte da história do país. Ele agora está fazendo um retorno perturbador: legisladores dos EUA estão realizando esforços conjuntos para enfraquecer ou revogar estatutos que proíbem empregar crianças.

Um chefe idoso nativo americano estava visitando a cidade de Nova York pela primeira vez em 1906. Ele estava curioso sobre a cidade e a cidade estava curiosa sobre ele. Um repórter de uma revista perguntou ao chefe o que mais o surpreendeu em sua viagem pela cidade. “Crianças pequenas trabalhando”, o visitante respondeu.

O trabalho infantil pode ter chocado aquele forasteiro, mas era um lugar comum então através da América urbana e industrial (e em fazendas, onde isso tinha sido costumeiro por séculos). Em tempos mais recentes, contudo, ele se tornou uma visão muito mais rara. A lei e o costume, a maioria de nós supõe, levou isso perto da extinção. E a nossa reação ao ver isso reaparecer pode se comparar à daquele chefe – choque e descrença.

Mas, é melhor nos acostumarmos com isso, uma vez que o trabalho infantil está fazendo um retorno com uma desforra. Um número impressionante de legisladores está realizando esforços conjuntos para enfraquecer ou revogar estatutos que há muito tempo impediam (ou, pelo menos inibiam seriamente) a possibilidade de explorar crianças.

Respire e considere isso: o número de crianças trabalhando nos EUA aumentou em 37% entre 2015 e 2022. Durante os últimos dois anos, quatorze estados ou introduziram, ou promulgaram legislações revertendo regulamentações que regiam o número de horas que as crianças podem ser empregadas, abaixaram as restrições sobre trabalho perigoso, e legalizaram salários submínimos para jovens.

Iowa agora permite aqueles tão jovens quanto quatorze anos trabalharem em lavanderias industriais. Na idade de dezesseis, eles podem pegar empregos em armações de telhados, construção, escavação, e demolição, e podem operar máquinas movidas à energia. Crianças com quatorze anos podem agora até trabalhar em turnos noturnos, e uma vez que eles alcancem quinze, podem integrar linhas de montagens. Tudo isso era, é claro, proibido não muito tempo atrás.

Os legisladores oferecem justificativas estúpidas para tais incursões em práticas estabelecidas há muito tempo. Trabalhar, eles nos dizem, vai manter as crianças fora dos computadores ou videogames, ou longe da TV. Ou isso vai tirar do governo o poder sobre o que as crianças podem e não podem fazer, deixando os pais no controle – uma afirmação já transformada em fantasia por esforços para tirar legislação protetiva e permitir crianças de quatorze anos trabalharem sem permissão formal dos pais.

Em 2014, o Instituto Cato, um laboratório de ideias de direita, publicou “Um Caso Contra Proibições de Trabalho Infantil”, argumentando que tais leis sufocam as oportunidades para as crianças pobres – e especialmente negras. A Fundação para a Responsabilidade do Governo, um laboratório de ideias fundado por uma gama de doadores ricos conservadores, incluindo a família DeVos, liderou esforços para enfraquecer leis sobre o trabalho infantil, e a Americanos pela Prosperidade, a fundação dos bilionários irmãos Koch, se juntou.

Essas agressões nem são confinadas a estados vermelhos como Iowa ou o Sul. Califórnia, Maine, Michigan, Minnesota, e New Hampshire, assim como Geórgia e Ohio, também foram alvo. Mesmo New Jersey passou uma lei nos anos da pandemia temporariamente subindo as horas permissíveis para adolescentes de dezesseis a dezoito anos.

A verdade contundente do assunto é que o trabalho infantil paga e está rapidamente se tornando notavelmente onipresente. É um segredo aberto que as cadeias de fast-food empregaram crianças abaixo da idade por anos, e simplesmente tratam as multas ocasionais por fazer isso como parte do custo de fazer negócios. Crianças tão jovens quanto com dez anos labutam em tais paradas no Kentucky, e mais velhas trabalhando além dos limites de horas permitido por lei. Construtores de telhados na Flórida ou Tennessee podem agora ser tão jovens quanto doze anos.

Recentemente, o Departamento de Trabalho encontrou mais de cem crianças entre as idades de treze a dezessete anos trabalhando em frigoríficos e matadouros em Minnesota e Nebraska. E essas são nada mais que operações noturnas. Empresas como Tyson Foods e Packers Sanitation Services (cujo dono é a BlackRock, a maior empresa de gestão de ativos do mundo) também estavam na lista.

Nesse ponto, virtualmente toda a economia é notavelmente aberta ao trabalho infantil. Fábricas de roupas e fabricantes de autopeças (abastecendo a Ford e a General Motors) empregam crianças imigrantes, algumas por dias de doze horas. Muitas são compelidas a deixar a escola apenas para acompanhar o trabalho. De uma maneira similar, as cadeias de abastecimento da Hyundai e da Kia dependem de crianças trabalhando no Alabama.

Como o The New York Times reportou no último fevereiro, ajudando a lançar a história do novo mercado de trabalho infantil, crianças menores de idade, especialmente migrantes, estão trabalhando em plantas de processamento de cereais e fábricas de processamento de alimentos. Em Vermont, “ilegais” (porque eles são muito jovens para trabalhar) operam máquinas de ordenha. Algumas crianças ajudam a fazer camisetas J. Crew em Los Angeles, assam pãezinhos para o Walmart, ou trabalham produzindo meias Fruit of the Loom. O perigo está à espreita. A América é notavelmente um lugar inseguro para trabalhar e a taxa de acidentes para crianças trabalhadoras é especialmente alta, incluindo um inventário aterrorizante de espinhas quebradas, amputações, envenenamentos e queimaduras desfigurantes.

A jornalista Hannah Dreier chamou isso de “uma nova economia de exploração”, especialmente quando se trata de crianças migrantes. Um professor de Grand Rapids, Michigan, observando o mesmo dilema, comentou: “Você está tirando crianças de outro país e as colocando em quase em servidão industrial”.

Há muito tempo agora

Hoje, nós podemos estar tão atordoados por esse espetáculo deplorável quanto aquele chefe estava na virada do século XX. Nossos ancestrais, contudo, não estariam. Para eles, o trabalho infantil era dado como certo.

O trabalho duro, além disso, tinha há muito sido considerado por aqueles nas classes superiores britânicas que não tinham que fazê-lo como um tônico espiritual que controlaria os impulsos indisciplinados das ordens inferiores. Uma lei elisabetana de 1575 forneceu dinheiro público para empregar crianças, como “um profilático contra vagabundos e indigentes”.

No século XVIII, o filósofo John Locke, então um celebrado campeão da liberdade, estava argumentando que crianças de três anos deviam ser incluídas na força trabalho. Daniel Defoe, autor de Robinson Crusoé, estava feliz que “crianças depois de quatro ou cinco anos de idade podiam cada uma ganhar o próprio pão”. Mais tarde, Jeremy Bentham, o pai do utilitarismo, optaria por quatro, já que de outra forma, a sociedade sofreria a perda de “anos preciosos nos quais nada é feito! Nada para a Indústria! Nada para a melhoria, moral ou intelectual”.

O Relatório sobre Manufaturas de 1791, do “fundador” americano Alexander Hamilton, observou que as crianças “que de outra forma ficariam ociosas”, podem ao invés se tornar uma fonte de trabalho barato. E tais afirmações que trabalhar em uma idade cedo evitam os perigos sociais de “ociosidade e degeneração” continuaram um acessório da ideologia de elite bem dentro da era moderna. Na verdade, isso evidentemente continua até hoje.

Quando a industrialização começou para valer durante a primeira metade do século XIX, observadores notaram que o trabalho nas novas fábricas (especialmente fábricas têxteis) era melhor feito por garotas de seis a doze anos de idade. Em 1820, as crianças contavam por 40% dos trabalhadores de fábricas em três estados da Nova Inglaterra. No mesmo ano, crianças abaixo de quinze anos faziam 23% da força de trabalho nas fábricas, e tanto quanto 50% da produção de têxteis de algodão.

E tais números disparariam depois da Guerra Civil. De fato, os filhos de ex-escravizados eram efetivamente reescravizados através de onerosos arranjos de aprendizagem. Enquanto isso, na cidade de Nova York e outros centros urbanos, padrones italianos aceleraram a exploração de crianças, enquanto as tratando brutalmente. Mesmo o então mentalidade brâmane e anti-imigrantes The New York Times se ofendeu: “O mundo desistiu de roubar homens da costa africana, apenas para sequestrar crianças da Itália”.

Entre 1890 e 1910, 18% de todas as crianças entre as idades de dez e quinze, cerca de dois milhões de jovens, trabalhavam, frequentemente 12 horas por dia, seis dias por semana.

Seus empregos cobriam a beira mar – muito literalmente como, sob a supervisão dos padrones, milhares de crianças descascavam ostras e pegavam camarões. As crianças também eram mensageiros de rua e distribuidores de jornais. Elas trabalhavam em escritórios e fábricas, bancos e bordéis. Elas eram “quebradoras” e “caçadoras” em minas de carvão pouco ventiladas, empregos particularmente perigosos e não saudáveis. Em 1900, de cem mil trabalhadores em fábricas têxteis no Sul, vinte mil eram abaixo da idade de doze.

Órfãos da cidade eram enviados para trabalhar em vidrarias do Centro Oeste. Milhares de crianças ficavam em casa e ajudavam suas famílias produzir roupas para fabricantes de lojas clandestinas. Outras embalavam flores em cortiços mal ventilados. Uma criança de sete anos explicou “eu gosto mais da escola que de casa. Eu não gosto de casa. Há muitas flores”. E na fazenda, a situação não era menos sinistra. Crianças tão jovens quanto três anos trabalhavam descascando bagas.

Todos na família

Claramente, bem no século XX, o capitalismo industrial dependia da exploração de crianças, que eram mais baratas de empregar, menos capazes de resistir, e até o advento de tecnologias mais sofisticadas, bem adequadas para lidar com o maquinário relativamente simples então no lugar.

Além disso, a autoridade exercida pelo chefe estava de acordo com as premissas patriarcais daquela era, seja na família, ou mesmo na maior das novas empresas industriais de propriedade predominantemente familiar daquele tempo, como a Siderurgia de Andrew Carnigie. E tal capitalismo familiar deu origem a uma perversa aliança de chefe e subalterno, que transformou as crianças em trabalhadores assalariados.

Enquanto isso, famílias da classe trabalhadora eram tão severamente exploradas, que elas precisavam desesperadamente da renda de seus filhos. Como resultado, na Filadélfia, por volta da virada do século, o trabalho de crianças contava por entre 28% e 33% da renda das famílias nascidas nativas de dois pais. Para imigrantes irlandeses e alemães, os números eram 46% e 35%, respectivamente. Não surpreendentemente, então, os pais da classe trabalhadora frequentemente se opunham a propostas de leis para o trabalho infantil. Como observado por Karl Marx, o trabalhador não era mais capaz de se sustentar, então “agora ele vende sua esposa e filhos. Ele se torna um negociador de escravizados”.

Apesar disso, a resistência começou a se montar. O sociólogo e fotógrafo denunciador Lewis Hine escandalizou o país com fotos comoventes de crianças escravizadas em fábricas e para baixo nos poços de minas. (Ele entrou em tais lugares fingindo ser um vendedor de bíblias). Mother Jones, a militante defensora da organização trabalhista, liderou uma “cruzada infantil” em 1903, em nome de quarenta e seis mil trabalhadores têxteis em greve na Filadélfia. Duzentos delegados crianças trabalhadoras apareceram na Baía de Ostras Presidente Theodore Roosevelt, Long Island, para protestar, mas o presidente simplesmente passou a bola, afirmando que o trabalho infantil era uma questão estadual, não federal.

Aqui e ali, as crianças tentavam fugir. Em resposta, os donos começaram a cercar suas fábricas com arame farpado, ou fazer as crianças trabalhar à noite, quando seu medo do escuro as manteria longe de fugir. Algumas das 146 mulheres que morreram no infame incêndio de 1911 na Triangle Shirtwaist Factory, no Greenwich Village, em Manhattan – os proprietários dessa fábrica de roupas tinham trancado as portas, forçando as trabalhadoras presas a pular para a morte das janelas do andar de cima – eram tão jovens quanto quinze anos. Essa tragédia apenas se adicionou ao crescente furor sobre o trabalho infantil.

Um Comitê Nacional de Trabalho Infantil foi formado em 1904. Por anos, ele fez lobby para os estados para proibir, ou pelo menos controlar, o uso do trabalho infantil. As vitórias, contudo, eram frequentemente obtidas distintamente a alto preço, quando as leis promulgadas eram invariavelmente fracas, incluindo dezenas de isenções, e eram mal aplicadas. Finalmente, em 1916, passou uma lei federal que proibia o trabalho infantil em todos os lugares. Em 1918, contudo, a Suprema Corte a declarou inconstitucional.

De fato, apenas nos anos de 1930, depois do golpe da Grande Depressão, as condições começaram a melhorar. Dada a sua devastação econômica, você pode presumir que o trabalho infantil barato teria sido um prêmio. Contudo, com empregos tão escassos, adultos – homens principalmente – tiveram precedência, e começaram a fazer o trabalho uma vez relegado às crianças. Nesses mesmos anos, o trabalho industrial começou a incorporar maquinários cada vez mais complexos, que provaram ser muito difíceis para crianças mais jovens. Enquanto isso, a idade para a escolaridade obrigatória estava constantemente crescendo, limitando ainda mais o conjunto disponível de crianças trabalhadoras.

Mais importante de tudo, o teor dos tempos mudou. O insurgente movimento trabalhista dos anos de 1930 odiava a própria ideia do trabalho infantil. Fábricas sindicalizadas e indústrias completas eram zonas inúteis para capitalistas procurando crianças para explorar. E, em 1938, com o apoio do trabalho organizado, o New Deal da administração do Presidente Franklin Roosevelt finalmente passou a Lei de Padrões Trabalhistas Justos, que, pelo menos em teoria, pôs um fim no trabalho infantil (embora ela isentasse o setor agrícola, no qual tal força de trabalho continuou lugar comum).

Além disso, o New Deal de Roosevelt transformou o zeitgeist nacional. Um senso de igualitarismo econômico, um recém-descoberto respeito pela classe trabalhadora, e uma suspeita sem fundo da casta corporativa fez o trabalho infantil parecer particularmente repulsivo. Em adição, o New Deal inaugurou uma longa era de prosperidade, incluindo aumento dos padrões de vida para milhões de trabalhadores, que não precisavam mais do trabalho de seus filhos para fazer face às despesas.

De volta ao futuro

É ainda mais surpreendente então descobrir que uma praga, uma vez banida, vive novamente. O capitalismo americano é um sistema global, suas redes se estendem virtualmente em todos os lugares. Hoje, há estimadas 152 milhões de crianças trabalhando no mundo todo. Não todas, é claro, estão empregadas diretamente ou mesmo indiretamente em empresas dos EUA. Mas elas certamente devem ser um lembrete de quão profundamente o capitalismo mais uma vez regrediu aqui e em todos os lugares através do planeta.

Se vangloriar sobre o poder e a riqueza da economia americana é parte de nosso sistema de crenças e elite retórica. Contudo, a expectativa de vida nos Estados Unidos, uma medida basal de retrocesso social, diminuiu implacavelmente por anos. Não apenas milhões não podem pagar por cuidados de saúde, mas sua qualidade se tornou de segunda categoria na melhor das hipóteses, se você não pertence aos 1% mais ricos. Em uma maneira similar, a infraestrutura do país está há muito em declínio, graças a sua idade e décadas de negligência.

Pensar nos Estados Unidos, então, como um país “desenvolvido” agora no auge do subdesenvolvimento e, nesse contexto, o retorno do trabalho infantil é profundamente sintomático. Mesmo antes da Grande Recessão que seguiu a implosão financeira de 2008, os padrões de vida estavam caindo, especialmente para milhões de trabalhadores colocados para baixo por um tsunami de desindustrialização de décadas. Essa recessão, que oficialmente durou até 2011, apenas exacerbou a situação mais ainda. Ela adicionou pressão aos custos trabalhistas, enquanto o trabalho se tornou cada vez mais precário, cada vez mais despojado de benefícios e não sindicalizado. Dadas as circunstâncias, porque não recorrer a ainda outra fonte de trabalho barato – crianças?

As mais vulneráveis entre elas vêm do exterior, migrantes do Sul Global, escapando de economias falidas, frequentemente rastreáveis para a exploração e dominação econômica americana. Se esse país agora está vivendo uma crise nas fronteiras – e está – suas origens estão desse lado da fronteira.

A pandemia de COVID-19 de 2020-22 criou uma breve escassez de mão de obra, que se tornou um pretexto para colocar crianças de volta ao trabalho (mesmo se o retorno do trabalho infantil na verdade seja anterior à doença). Considere tais crianças trabalhadoras no século XXI como um sinal distinto de patologia social. Os Estados Unidos podem ainda intimidar partes do mundo, enquanto mostrando seu poderio militar sem fim. Em casa, contudo, ele está doente.

Steve Fraser é escritor e historiador

Fonte: Jacobin

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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