PUBLICADO EM 08 de set de 2021
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‘Moral do mercado’: quando os direitos humanos cobrem a economia neoliberal

Com o começo da Guerra Fria em 1947, a Rússia atacou a hipocrisia dos EUA e o que ela via como sua falta de direitos humanos: a segregação racial no Sul; a falta do direito de as mulheres escolherem; suas numerosas invasões de Países estrangeiros; o tratamento de má qualidade de seus trabalhadores; e o tratamento de seus povos indígenas. Em retaliação, economistas dos EUA argumentaram que essa liberdade econômica, através do neoliberalismo, foi construída sobre uma estrutura moral e institucional baseada em uma ordem de livre mercado.

Henry Kissinger em visita a Augusto Pinochet dias depois do golpe militar no Chile.

Por Graham Holton (People´s World)

Essa estrutura moral foi construída dentro da Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR, na sigla em inglês), consagrada nos direitos humanos promovidos pelo neoliberalismo. No livro “The Morals of the Market: Human Rights and the Rise of Neoliberalism”, Jessica Whyte mistura investigação histórica com teoria crítica para analisar “concepções hegemônicas de direitos humanos, ao invés de uso de direitos humanos por grupos marginalizados e subalternos.” Nesse estudo fascinante, Jessica Whyte olha se o neoliberalismo e os direitos humanos são verdadeiramente independentes, com uma profunda “investigação das relações históricas e conceituais entre direitos humanos e neoliberalismo.” Ela argumenta que o neoliberalismo foi um projeto moral desde o início, e essa dimensão moral o viu promover os direitos humanos.

Uma economia capitalista, argumenta o economista conservador Friedrich Hayek, chama para a “moral do mercado”, com sua busca de auto interesse, responsabilidade individual e familiar e submissão “aos resultados impessoais do processo do mercado”. Pensadores neoliberais alistaram os direitos humanos para “desafiar o socialismo, a social democracia e planejamento estatal”, afirmando que os direitos humanos se tornaram a “linguagem moral do mercado competitivo”.

O argumento de Hayek se opôs a busca de políticas estatais e econômicas formuladas coletivamente seguidas por URSS e China. Hayek viu a redistribuição de riqueza como ameaçadora às fundações morais do sistema capitalista. Whyte vê a moral de Hayek como um “sistema de regras informais de conduta que guiam ações individuais.” Os neoliberais desenvolveram sua própria variedade de direitos humanos, como apoios morais e legais para uma ordem de mercado neoliberal.

Esses direitos humanos procuram preservar a ordem do mercado e hierarquias sociais herdadas, contra qualquer oposição política. Os neoliberais retratam arenas políticas como um locus de conflito que nunca cessa, e o mercado como tendo virtudes antipolíticas, baseadas em cooperação e liberdade individual e direitos institucionalizados. São as virtudes do mercado livre que separam a política da economia, trazendo assim uma “domesticação do Estado”.

O neoliberalismo vê o Estado “batendo em submissão” qualquer um que ameace a ordem do livre mercado. Direitos humanos neoliberais são constituídos pelo direito de manter a propriedade privada, envolver-se em investimento estrangeiro, e controles limitados sobre a ordem do mercado. Essas instituições legais cortam a conexão de participação política em uma sociedade civil.

Livro: “The Morals of the Market: Human Rights and the Rise of Neoliberalism”, de Jessica Whyte. Londres: Verso Books, 2019.

As principais Organizações Não Governamentais (ONGs) humanitárias e de direitos humanos abraçam a dicotomia de uma sociedade comercial ou civil, que verificam a centralização do poder do Estado, por um lado, e políticas coercitivas, do outro. A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e os Médicos sem Fronteiras (MSF) desenharam a definição de direitos humanos como apresentado pelos neoliberais, no final da Segunda Guerra Mundial.

Essas organizações apresentaram as mesmas virtudes antipolíticas que os neoliberais: restringir o poder político e o aprimoramento das liberdades individuais. Alguns desses grupos também convocaram os Estados mais poderosos para usar intervenção militar para assegurar os direitos humanos, e para fazer cumprir a moral do mercado através do mundo. Então, em economias capitalistas, os direitos humanos, como definido pelos neoliberais, tem sido muito mais influentes que os direitos humanos como definido por Estados socialistas.

Whyte ainda argumenta que a moral do mercado e seus valores para os poderes ocidentais pós-coloniais foram ameaçados pelo crescente poder de estados pós-coloniais, o Sul Global. Na elaboração dos UDHR, a antiga metrópole e sua periferia assegurou que as liberdades individuais de mercado não fossem sobrecarregadas por direitos socioeconômicos e políticos.

Direitos humanos individualistas prevaleceriam através do comércio internacional e da exploração dos recursos naturais em Países do Terceiro Mundo, enquanto esses Países exigiam segurança política e soberania de recursos. Essa definição aceita de direitos humanos por Países capitalistas reflete a vitória do neoliberalismo sobre direitos humanos socialistas.

Um exemplo clássico de direitos humanos neoliberais sob hegemonia dos EUA é o Chile de Pinochet. O “modelo econômico de Chicago” foi adotado pelo País de Terceiro Mundo, depois que uma grande catástrofe destrói a economia. Ao lado da violência patrocinada pelo Estado cruel, estava a presença da Anistia Internacional, com seus próprios, claramente definidos, direitos humanos.

Whyte vê a agenda pública da Anistia Internacional como se encaixando entre as conclusões do altamente influente de Naomi Klein, Shock Doctrine, e os argumentos do menos conhecido de Samuel Moyn, “Powerless Companion”. Klein argumenta que a defesa humanitária no Chile obscureceu as ligações entre a agenda econômica neoliberal e a violência política, enquanto que Moyn argumenta que a incapacidade da Esquerda de mobilizar apoio popular foi em si mesma parcialmente responsável pelo sucesso de um modelo apolítico de movimento de direitos humanos.

Whyte procura um meio termo entre Klein e Moyn, reconhecendo a importância do enfoque pragmático, procurado pelas organizações de direitos humanos, como complementando as “críticas do tratamento de choque econômico”. Ela conclui que, por explicitamente tendo um foco estreito e não se envolvendo nas políticas internas de um País, os defensores dos direitos humanos permitiram que a economia neoliberal crescesse, apoiada por seus fundamentos morais e definições de direitos humanos. Contanto que os indivíduos obedientes fossem protegidos da tortura e da negação da liberdade de expressão, o neoliberalismo floresceu.

Whyte se opõe a visão de Moyn dos direitos humanos como o “companheiro impotente”, usando as origens de atividade do Liberté sans Frontières (Liberdade sem Fronteiras, LSF). Ela identifica a explícita inclusão da dicotomia neoliberal entre política e mercado no discurso dos direitos humanos, que pode ser identificado com organizações humanitárias baseadas no Norte Global. Protegendo o indivíduo contra danos específicos, em oposição a perigos estruturalmente induzidos, defensores dos direitos humanos reforçam a dicotomia sendo experimentada no nível político. Isso minou as reparações pós-coloniais e a abordagem baseada em direitos da Nova Ordem Econômica Internacional (NIEO, na sigla em inglês), criando a “moral do desenvolvimento”.

Whyte finalmente examina a relação simbiótica entre defensores dos direitos humanos, que desafiam a inspiração totalitária de projetos redistributivos, e economistas neoliberais, que empregaram a linguagem dos direitos humanos para entrincheirar as fundações institucionais e morais de uma economia de mercado competitiva e para moldar sujeitos empresariais. Em contraste com esses anticolonialistas que tinham procurado estabelecer o direito a autodeterminação, os neoliberais viam a promessa dos direitos humanos em restringir o poder soberano, especialmente no pós-colonial, e em restringir a politização da economia.

Juntos eles forneceram os critérios para o discurso nas relações Norte-Sul, desde a década de 1950. Definindo hegemonia como uma função de relações de poder geopolíticas, Whyte implica que os direitos humanos foram implantados dentro das lutas pós-coloniais. Os “direitos humanos” prevaleceram através do uso da violência e suas consequências socioeconômicas. Enquanto fazendo sua afirmação metodológica abordando formas hegemônicas específicas, Whyte vê as concepções prevalecentes como sendo enraizadas no poder hegemônico do neoliberalismo. Em 2018, os EUA se retiraram da Comissão das Nações Unidas de Direitos Humanos (UNHRC, na sigla em inglês). O embaixador dos EUA para as Nações Unidas as denunciou como “uma fossa de viés político”.

Esse livro é brilhantemente pesquisado e convida a continuar o debate no campo do neoliberalismo e direitos humanos. É essa dicotomia que permite mais investigações acadêmicas e debate dentro da moral do mercado. É um livro oportuno, como mostrado pelas acusações crescentes entre os governos dos EUA e China sobre o que constitui direitos humanos: neoliberalismo X socialismo. Os EUA vêem a China como violando os direitos humanos no tratamento de sua população muçulmana, na política do Filho Único (agora obsoleta) e na vigilância de seus próprios cidadãos. Enquanto a China vê os EUA violando os direitos humanos pelo racismo sistêmico em seus sistemas judicias e de policiamento, no tratamento de seus pobres e sem-teto e na violação dos direitos de seus povos indígenas. Esse debate vai continuar por muito tempo no futuro.

Dr. Graham E. L. Holton escreve sobre economia política global.

Fonte: People´s World

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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