A frase mais completa para revelar quem é Jair Bolsonaro foi dita pelo próprio: “Alguns vão morrer? Lamento… Essa é a vida, é a realidade. Não podemos parar a fábrica de carros porque tem 60 mil mortes no trânsito no ano”.
Além da forma chocante, evidenciando o desprezo e a insensibilidade pelas mortes que poderiam ser evitadas, há o absurdo da comparação. Como Bolsonaro não obedece e muda leis que o desagradam —haja vista pescar em local proibido, retirar radares das estradas, incentivar mineração em área indígena etc.—, é regido pelo autoritarismo ignorante.
Existe a ciência e a informação que ele manipula: “O cara sai pulando em esgoto e não pega nada”. Credo. Como não pega nada? Só para quem acha que saneamento básico não faz diferença.
Jair demitir Mandetta é como o capitão dispensar o marechal no momento mais difícil da batalha. As crises de manifesto ciúme frente ao seu competente e tranquilo ministro da Saúde geram insegurança entre a população. Conversando com um homem simples, ficou clara a confusão. “Senadora, o que a senhora está achando das medidas do governo?” Comecei a responder que estavam devagar. Foi quando ele me interrompeu, aflito: “E o isolamento? É pra valer?”. Fiquei consternada. Droga de presidente.
O tsunami completo chegará com os problemas econômicos. O número de favelas, trabalhadores informais e pessoas que ficaram sem emprego e condição de sobrevivência já é enorme. Em pouco tempo o desespero as levará às ruas.
E com este governo que tem como chefe um sujeito que só pensa em reeleição —e outro, em agradar o andar de cima—, o povo pobre vai sofrer e morrer quando muito poderia ter sido feito.
Não são apenas as leis para mitigar o desespero do informal, o assalariado demitido, o povo das favelas, a demorada e tímida elaboração de linhas de crédito para pequenas e médias empresas, mas espantam as brechas que tentam encontrar para economizar no Bolsa Família, no benefício continuado. Acrescente-se o desinteresse em criar formas seguras de levar recurso e comida para os que vão perecer sem este auxílio. E tentar com medida provisória encobrir o que o governo faz e deixa de fazer, quebrando a Lei de Acesso à Informação.
A sociedade civil faz tudo que pode, mas, além de a responsabilidade de organização ser da maior autoridade do país, o presidente, de forma irresponsável, conflagra e confunde a nação com o slogan “O Brasil não pode parar”. Que sandice.
Em vez de fazer como outros líderes que se equivocaram e voltaram atrás na questão do isolamento, e gastar em recursos tudo o que puder e o que não puder para salvar vidas, este presidente não atina que serão estas vidas e mãos que reerguerão o Brasil.
Este aparente fio desencapado sabe muito bem onde quer chegar, pois já explicitou, ao longo de sua vida e com clareza, por qual cartilha se guia. Não será tranquilo, presidente. A queda nas pesquisas, os panelaços e a indignação de antigos apoiadores já mostram que a resistência será forte.
Perigo à vista: o rei está nu, transtornado e acuado.
Marta Suplicy, ex-senadora da República (fev.11 a jan.19), ex-ministra da Cultura (2012-14, gestão Dilma) e do Turismo (2007-08, gestão Lula) e e ex-prefeita de São Paulo (2001-04)
Fonte: Folha de São Paulo