PUBLICADO EM 15 de jun de 2020
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Educação pública em tempos de pandemia: quando a vida real encontra o trabalho remoto

Não seria preciso uma pandemia de proporções trágicas para que discutíssemos como se encontra o exercício profissional na Educação Pública, mas é inegável que o quadro pandêmico e o consequente advento do Ensino/Trabalho Remoto pôs a nu as precárias condições de trabalho, formação, acessibilidade e saúde da categoria.

Por Alex Saratt e Leonardo Preto

Foto: Pikabay

A jornada de trabalho extensa e intensa, o número excessivo de escolas, turmas e alunos ou o falta de pessoal e acúmulo de tarefas nos setores de suporte, os vencimentos muito abaixo das necessidades materiais de professores e funcionários, as dificuldades de acesso e domínio das tecnologias da informação e comunicação e os problemas de assédio moral e adoecimento físico e psíquico – geralmente sonegado ou subnotificado – sempre compuseram o quadro real dessas condições entre os trabalhadores em educação.

Entretanto, as ações adotadas e as exigências feitas para a realização do trabalho educativo, pedagógico, administrativo e burocrático da escola tornou tudo isso explícito e fez sentir na pele como estávamos mergulhados em situações que extrapolam nossas capacidades físicas e mentais. A sobreposição automática, mecânica e linear daquilo que se praticava presencialmente para o meio digital e virtual trouxe questões que vão além do fato de não terem sido discutidas com a participação e contribuição dos principais atores do processo educacional, pois a reboque apareceram as já citadas insuficiências e precariedades denunciadas há tempos quanto ao quadro de pessoal e a estrutura e funcionamento material e pedagógico das escolas públicas.

Para os funcionários, além de regras e práticas draconianas, exposição maior aos riscos de contágio, descumprimento dos protocolos e o acúmulo de tarefas. Aos professores, poupados da presença nos espaços escolares (embora haja registros de que mesmo essa normativa esteja sendo desobedecida), ocorrem alterações frequentes das rotinas e requisitos, desencontro nas orientações emanadas pela mantenedora, eliminação dos espaços e momentos de vida privada (o fornecimento dos meios e instrumentos de trabalho deveriam ficar a cargo do Governo e a regulação das horas de trabalho exigiria que a comunicação e o atendimento fosse feito nos turnos equivalentes de trabalho). Além disso, a transferência dos afazeres docentes para múltiplas e simultâneas plataformas digitais impossibilitam a execução das atividades dentro da carga horária formal. Mesmo para as equipes diretivas e pedagógicas, fenômeno idêntico ocorre, resultando num sobre trabalho cumulativo e estafante acima dos padrões de normalidade funcional, o que muitas vezes leva a situações onde a pressão hierárquica para realizar e atingir as determinações superiores abra brechas para atitudes estranhas ao coleguismo e à gestão democrática, flertando perigosamente com o autoritarismo e assédio moral.

Há de se registrar também que acontece uma espécie de “fetichização” das tecnologias: nela o recurso informático aparece como se fosse mágico, produto de ação instantânea, quase autorealizador das complexas relações que caracterizam o processo de ensino-aprendizagem. Insinuam erroneamente um tempo minimizado e otimizado, porém isso está longe de se configurar em dado realístico. Aliás, nesse aspecto, cabe lembrar que em atividades e profissões onde os trabalhadores estão diretamente ligados aos computadores (ou tablets e smartphones, no nosso caso) há uma série de regramentos quanto ao tempo máximo de exposição às telas luminosas e digitação, prevendo não só jornada diária diferenciada e reduzida como também períodos de intervalo e descanso frequentes ao longo do turno.

Aos educandos, impedidos não só do convívio e partilha coletiva que somente a escola pode proporcionar, há empecilhos e prejuízos. Desde a exclusão digital – não restrita à posse material de aparelhos e conexões, mas ao próprio conhecimento e desenvoltura para operar os recursos virtuais – até as limitações do suporte escolar ou familiar, são vários os elementos que interferem na sua formação (que não pode ser simplificada a questão intelectual). A metodologia sugerida implicitamente advoga o conteudismo, o produtivismo e mesmo a avaliação dentro dos moldes tradicionais – que já eram objeto de crítica didática e pedagógica em situações de “normalidade” – inclusive trazendo consigo as expectativas de aproveitamento e reprovação, o que ignora a excepcionalidade pandêmica.

Retomando a abordagem mais ligada aos trabalhadores em educação, a tendência óbvia e inevitável é de que a sobrecarga de trabalho acarrete em agravamento das circunstâncias que causam o adoecimento físico e psíquico, situação esta que no caso da rede pública estadual do Rio Grande do Sul torna-se elevada à enésima potência dada a política governamental em curso que retirou direitos, puniu grevistas e ainda mantém o arrocho salarial, o atraso de pagamentos e o expediente da “compra do próprio salário” como método seja de gestão, seja de punição, resultando na destruição da estima e identidade profissional

Não é possível deixar de citar e problematizar sobre a ameaça constante que paira sobre as cabeças de funcionários e professores quanto às fórmulas de terceirização, “uberização” ou demissão de pessoal com as mudanças da grade curricular combinadas com a introdução repentina, massiva e distorcida da modalidade EaD, formato cujas virtudes e potências podem se transformar em instrumento de privatização, mercantilização e ideologização da Educação Pública – gerida então por grupos empresariais e sob as lógicas da competitividade e meritocracia – destroçando as dimensões sociais, críticas e políticas da Educação e inviabilizando o ativismo sindical reivindicatório, de luta e propositivo.

De modo direto: tal qual acontece em outros ramos de atividade econômica e categorias laborais, a conjugação de desestruturação do Estado e Políticas Públicas, crise do Capitalismo, introdução arbitrária de novas tecnologias, Neoliberalismo, Governos Autoritários ou Elitistas e Pandemia significam um grave risco à Educação – desde educadores até os educandos e, modo geral, a própria sociedade – de que os “novos” padrões envolvam a realidade numa bela embalagem, mas contenham em si perdas, retrocessos e degradação. A quem educa fica evidente que as respostas e soluções nos marcos do Capitalismo castigam e condenam a classe à pauperização e exclusão. É preciso construir um tipo de FRENTE AMPLA PELA EDUCAÇÃO que faça da consciência, atitude e seja capaz de alertar e convencer pais e alunos quanto a gravidade de tudo isso e fazer a disputa de posições e projetos, do contrário se verá na Educação Pública a reedição que já se viu em outras categorias profissionais: a desestruturação do trabalho, a eliminação de postos de trabalho e a perda de centralidade e sentido da ação educativa para transformar a sociedade. A vida virtual com seu trabalho remoto não deverá substituir o ato educativo da vida real praticada com suor, alegrias e lágrimas literalmente não virtuais.

Alex Saratt e Leonardo Preto Echevarria são professores da rede pública estadual do RS e militantes da CTB

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