PUBLICADO EM 29 de jun de 2021
COMPARTILHAR COM:

Desabamento do prédio em Miami pode ser por mudança climática

Combinação trágica de mudança de terreno, construções inadequadas na costa e leis inapropriadas para lidar com os efeitos da mudança climática pode ter levado à queda do edifício

Prédio que desabou parcialmente em Miami, na Flórida – Foto: Reprodução/redes sociais

Não havia passado nem a metade de um dia após o desabamento da torre sul do complexo Champlain Towers, quando começaram as especulações sobre o que havia causado o colapso repentino de um edifício relativamente moderno . Charles Burkett, o prefeito de Surfside — município costeiro no condado de Miami-Dade, onde ocorreu a tragédia — disse o que muitos pensavam: “supõe-se que essas coisas não acontecem nos Estados Unidos”. De acordo com especialistas entrevistados pelo GDA e pela imprensa local, a causa pode ter sido uma combinação trágica de mudança de terreno, construções inadequadas na costa e leis inapropriadas para lidar com os efeitos da mudança climática.

“Isso poderia ter sido evitado”, disse a arquiteta venezuelana Mariana Rodríguez, que já assessorou algumas associações de condomínios, que são formadas pelos proprietários para administrar o prédio. “Os regulamentos criados para evitar algo assim foram aprovados há mais de 30 anos, quando nem se pensava que teríamos uma aceleração tão drástica da elevação do nível do mar e da intensidade e frequência dos furacões”.

Uma cidade em guerra
A imagem de Miami é a de uma cidade que vive uma festa constante. Não é falsa, mas não poderia ser mais incompleta. Miami e todos os municípios próximos travam uma guerra constante contra a natureza. É uma das características históricas de uma área criada graças à teimosia de um grupo de homens que queria fazer sua própria conquista no Sul da península da Flórida. Ao contrário daqueles que foram para o Oeste contagiados pela corrida do ouro, aqueles que vieram para Miami em vez de escavar tiveram que destruir os manguezais protetores e, depois, preencher o espaço. Muito do que agora é o território costeiro da cidade estava sob o mar ou era pântano.

Embora os visitantes não percebam, a natureza é um inimigo que não desiste. Entre 1950 e 2015, as autoridades da Flórida gastaram US$ 1,3 bilhão (R$ 6,4 bilhões) “cuidando” das praias, ou seja, comprando areia para substituir a que as tempestades tiram todos os anos. Não é barato e é necessário tirar o dinheiro de algum lugar.

No final dos anos 1960, Surfside foi forçada a suspender novas licenças de construção enquanto modernizava seu deteriorado sistema de esgoto. De acordo com o jornal Miami Herald, em 1979 a empresa que construiu as Champlain Towers contribuiu publicamente com US$ 200 mil (R$ 985 mil) para o gabinete do prefeito para financiar metade do projeto, para que fosse iniciado e concluído. Na verdade, foi o primeiro prédio de seis andares a ser inaugurado na área.

“Isso foi antes do furacão Andrew [em 1992], que devastou boa parte da cidade. Depois disso, houve mudanças importantes nas leis e nos códigos de construção — lembrou Rodríguez. — Não alteraram o regulamento de 40 anos, o que foi uma pena, mas ninguém imaginou o que estava por vir”, frisou a arquiteta, referindo-se à lei de 1975 do município, que exige que edifícios com mais de três pisos sejam recertificados como “seguros” ao chegar a quatro décadas de existência.

O que estava vindo e o que virá
Entre 1993 e 2019, o nível do mar no Sul da Flórida subiu 12,7 centímetros e pode chegar a mais 15 centímetros até 2030, alertou um estudo sobre mudanças climáticas do Sudeste da Flórida, produzido pelas autoridades ambientais dos condados vizinhos de Miami-Dade, Broward, Monroe e Palm Beach. O Corpo de Engenheiros do Exército propôs a construção em Miami Beach de uma parede costeira de seis metros, a um custo de US$ 6 bilhões (R$ 29 bilhões). A situação é tão grave que, em 2060, foi alertado que 40% de Miami poderia estar submersa.

Da mesma forma, o Escritório de Sistemas Costeiros e Praias do Departamento de Proteção Ambiental da Flórida publicou um relatório em 2019 afirmando que toda a área ao longo da costa atlântica estava “criticamente erodida”, o que torna “imperativo” rever a situação das construções na praia e as leis para o futuro.

Como outras construções da época que ficavam em frente à praia, o Champlain Towers foi construído em terreno preenchido. Os planos de construção indicam que a técnica utilizada era típica da época, uma base de concreto artificial enraizada na rocha calcária.

“Deveria ter resistido a qualquer tipo de movimento no terreno”, explicou o engenheiro Charles Danger, que fez parte do Departamento de Inspeções de Edifícios no condado de Miami-Dade por 26 anos, até 2014, e era responsável por impor as alterações do código depois do furacão Andrew.

Afinal, as torres sobreviveram a mais de trinta tempestades tropicais intensas e quatro grandes furacões. O mais recente foi o furacão Irma, em 2017, e os danos na praia de Surfside foram tão grandes que obrigaram a prefeitura a contratar um “lobista de areia” para ajudá-la a levantar fundos para resolver o problema. No final, o município conseguiu comprar 202,5 toneladas cúbicas de areia, o equivalente a mil piscinas olímpicas.

Prédio desabou parcialmente – Foto: Reprodução/redes sociais

A tempestade perfeita
Alguns políticos rejeitaram a possibilidade de que o desastre em Surfside tenha sido devido ao aquecimento global, alegando que, se assim fosse, haveria mais edifícios com problemas. Infelizmente, a torre sul do Champlain Towers parecia ser particularmente vulnerável às consequências do clima devido a problemas estruturais.

Um estudo da Universidade Internacional da Flórida indica que as torres afundaram dois milímetros por ano entre 1993 e 1999, uma taxa mais alta do que o resto dos imóveis próximos.

“Não sabemos por que isso aconteceu, mas podemos detectá-lo via satélite”, disse Shimon Wdowinski, um dos pesquisadores. “Não acho que tenha sido o motivo do colapso, mas pode ter contribuído”.

Além disso, o prédio apresentava grandes degradações, com frequentes inundações no estacionamento, descoloração e rachaduras. Os problemas levaram a diretoria do condomínio a contratar a empresa Morabito Consultores em 2018. Em seu relatório, a empresa alertava que havia descoberto “fissuras de diferentes graus de profundidade nas colunas, vigas e paredes de concreto” da garagem subterrânea. O documento também mencionou “danos significativos na laje de concreto estrutural” da base em que a piscina estava. A impermeabilização das áreas próximas ao mar fazia com que elas precisassem ser “totalmente removidas e substituídas”.

Um dos sobreviventes, que não quis ser identificado, disse que a garagem costumava ser inundada com água salgada, levando uma vizinha a entrar com um processo em 2015 para agilizar o conserto. Na época do colapso, os proprietários estavam pagando taxas extras entre US$ 70 mil e US$ 100 mil (R$ 344 mil a R$ 492 mil) para financiar os reparos. As despesas variavam de US$ 8 milhões a US$ 15 milhões (R$ 39 milhões a R$ 73 milhões). Também há evidências de que a direção do condomínio manteve a prefeitura sempre informada.

“Eles foram até parabenizados por terem a iniciativa antes da recertificação”, lembrou o sobrevivente.

Os proprietários chegaram a conseguir um empréstimo para pagar o projeto, mas os reparos no prédio foram atrasados pela pandemia. “Eles estavam prestes a começar”, explicou o homem.

Uma trágica ironia
O aumento das vibrações na área pode ter sido outro fator que complicou a situação da torre. Nos últimos anos, edifícios altos e luxuosos foram erguidos na área. Duas semanas antes do colapso, a Marinha avisou que conduziria explosões subaquáticas controladas perto de Surfside. Um dos prédios próximos havia implodido dias antes e, horas antes do desastre, o teto havia sido perfurado com maquinário pesado para instalar um sistema de limpeza das janelas.

Quando a Surfside foi fundada em maio de 1935, o objetivo era que permanecesse quase natural, com exceção de alguns edifícios luxuosos como o ainda existente Surf Club, onde personalidades importantes como Winston Churchill, Frank Sinatra, Elizabeth Taylor, Ava Gardner e Dean Martin passaram longos períodos. O objetivo foi seguido precisamente até o início da construção do complexo Champlain Towers. Os efeitos da mudança climática na praia e os gastos que gerou forçaram as autoridades a emitir alvarás de construção para gerar receitas fiscais mais elevadas. Sem elas, não há areia e mar; sem areia e mar, não há turismo. É um ciclo vicioso que destrói, repara e continua destruindo aquele paraíso original, ceifando vidas como as do ocorrido em Surfside e que pode ter causado o primeiro grande desastre das mudanças climáticas.

Fonte: Agência O Globo

Leia também:

Crise climática e alimentar são os principais desafios do mundo pós-pandemia

ENVIE SEUS COMENTÁRIOS

QUENTINHAS