Nada mais nos surpreende vindo do atual governo federal. O Decreto 10.530, editado no dia 26/10, abre caminho para a privatização do SUS (Sistema Único de Saúde). Prevê estudos “de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de unidades básicas de saúde”.
O CNS (Conselho Nacional de Saúde) emitiu nota à imprensa chamando a iniciativa de “arbitrariedade”. “Estamos nos posicionando perante toda a sociedade brasileira, contra qualquer tipo de privatização, de retirada de direitos e de fragilização do SUS. Continuaremos defendendo a vida”.
A quem interessa a privatização do SUS? Com certeza não é aos mais de 140 milhões de usuários, principalmente os pobres, os vulneráveis, aqueles que recebem um salário-mínimo, os desempregados. O interesse é das operadoras e empresas do setor privado de saúde, nacional e internacional, que estão de olho há muitos anos.
Eu fui deputado constituinte. Posso testemunhar. Antes da Constituição Cidadã, a saúde pública no Brasil era vista de uma forma, tratada de um jeito, distante da população. Depois dela, a situação mudou para melhor. Pela primeira vez, o país reconhece a saúde como um direito social de todos e não um serviço.
É daí que surge o Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, garantindo acesso universal, igualitário e gratuito. Exemplo para o mundo. Fizemos um grande embate, principalmente com apoio dos movimentos sociais e populares, que se mobilizaram em todo o País para garantir esse serviço público.
Há uns anos, o Dr. Dráuzio Varella afirmou que “naquela época, só os brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica, pelo antigo INPS. Os demais pagavam pelo atendimento ou faziam fila na porta de meia dúzia de hospitais públicos. Eram enquadrados na indigência social os trabalhadores informais, os desempregados. As crianças não tinham acesso a pediatras”.
É inegável que há um Brasil antes da Constituição Cidadã, e outro depois. Um Brasil antes do SUS, e outro depois. Conseguimos avançar imensamente rumo a melhores condições de saúde e de vida. Se existem problemas, que se resolvam. O sistema não é estático, está sempre em movimento. A privatização do SUS é um ataque mortal contra a dignidade da população.
Temos hoje mais de 70 milhões de pessoas vivendo na miséria e na pobreza; mais de 30 milhões de desempregados e desalentados; 45 milhões de trabalhadores informais. As perspectivas de crescimento, segundo institutos especializados, são as piores possíveis. O Brasil está sem comando, um navio à deriva.
É preciso esclarecer que o SUS fornece atendimento gratuito e emergencial, remédios e vacinas de graça, ele faz a regulação de hemocentros, transplante de órgãos, financia pesquisas que ajudam a avaliar o risco de surtos e epidemias com dados para o controle e prevenção de doenças, entre outros serviços.
Nesta pandemia que, infelizmente, o governo mostrou descaso no combate à Covid-19, ficou, mais uma vez, provada a importância do SUS. Milhares de vidas foram salvas. Há de se dizer também que cerca de três milhões de clientes de planos privados migraram para o SUS, devido aos abusivos aumentos.
O setor da saúde lida diretamente com a preservação da vida e com o sofrimento das pessoas. É claro que há muitos desafios. Nas últimas cinco décadas, a população urbana cresceu. As cidades incharam, os problemas surgiram: falta de infraestrutura de serviços básicos, abastecimento de água potável, esgotos sanitários, recolhimento de lixo. Tudo isso tem haver com saúde pública.
Temos que fazer um esforço enorme. Primeiramente, fazermos uma mobilização nacional, com a participação de toda a sociedade, contra a privatização do SUS. Segundo, dirigirmos as nossas forças no sentido de o governo aportar mais recursos e melhorar, de forma contínua, o atendimento do SUS.
A Emenda Constitucional nº 95 (teto dos gastos) congelou os investimentos públicos por 20 anos. O SUS perdeu cerca de 19 bilhões de reais somente em 2019. E sabe o que aconteceu? Piora na mortalidade infantil, aumento dos casos de dengue, retorno do sarampo. O CNS estima que, nesses 20 anos, o prejuízo será da ordem de 400 bilhões de reais. Que se derrube a EC 95.
O SUS é extremamente importante para o País e para a nossa gente. Nenhum governo pode ser irresponsável a ponto de entregar ao setor privado o sistema público de saúde. A sociedade não pode se calar, os movimentos sociais precisam ir às ruas, se movimentar nas redes sociais. Solicitei a bancada do PT no Senado a apresentação de um PDL (Projeto de Decreto Legislativo) para sustar o decreto do governo, o que foi feito. A responsabilidade é enorme… Privatizar o SUS, não! Salvar vidas, sim!
Paulo Paim, senador PT/RS; Presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado