A fotografia da artista pop Beyoncé usando a bandeira do Brasil em sua estadia em terras baianas causou uma repercussão estrondosa. Dentre os milhares de fãs brasileiros que, extasiados se manifestaram, causou especial perplexidade e desânimo o comentário feito por liderança política de esquerda que não mencionarei para evitar constrangimentos. Basta dizer que tal liderança é parlamentar e possui grande prestígio em sua área de atuação. O comentário dela, emocionada com o gesto da artista estadunidense, é de que ter a bandeira nacional empunhada pela estrela daria o início da recuperação dos símbolos nacionais, até então capturados pela extrema direita. Suspiros.
Colonização cultural
O comentário foi sinceramente emocionado. Deixa nítido o profundo nível de colonização cultural de que padece parte considerável de nossa esquerda. Os filmes, livros, séries e músicas provenientes dos Estados Unidos e países associados influenciam de maneira importante os valores que essa militância defende e propaga como se fossem seus. Basta recordar o frenesi que certa parcela da sociedade, mesmo um bom número de ditos politizados e progressistas, demonstrou com o lançamento do filme da boneca Barbie. Uma onda de emoção que se pretendeu inquestionável. Empoderadas das redes sociais fizeram poses em vídeos e fotos vestindo rosa como se vestidas da própria liberdade. Um acontecimento.
Stanislaw Ponte Preta
Apenas mais um episódio do que Stanislaw Ponte Preta classificaria como o Festival de Besteiras que assola o país. Este é o título do livro que o autor, cujo verdadeiro nome era Sérgio Porto, publicou em 1966 em meio a Ditadura Militar. Ponte Preta era cronista de um jornal criado pelo presidente Getúlio Vargas, nacionalista que legou ao Brasil a PETROBRAS e a CLT, dois símbolos que as décadas não conseguiram ainda destruir totalmente. O Golpe Militar, que Ponte Preta satirizou com seu humor inconfundível, interrompeu uma iniciativa autóctone de projeto nacional de desenvolvimento. Os militares e a burguesia nacional, a serviço dos Estados Unidos, amordaçaram e desmontaram de maneira quase irreversível, a ideia de uma esquerda nacionalista relevante no Brasil.
Nacionalismo órfão na nova democracia
A redemocratização foi acompanhada por todo um revisionismo da intelectualidade de esquerda, que aos poucos se distancia do legado de Vargas, que fora apoiado por Prestes, e vai cada vez mais se deslocando para um cosmopolitismo aparentemente progressista. Nessa onda, que tem base popular no operariado metalúrgico do ABC, surge não só o PT mas também o PSDB. É a revanche de São Paulo, inconformada com a perda de protagonismo que tivera na era Vargas. O coração econômico do país se renderá a ideologia do capitalismo pós-industrial e oferecerá lideranças desse pensamento tanto à esquerda quanto à direita.
O nacionalismo permanecerá praticamente órfão na nova democracia. Aqui e ali algumas vozes se levantam, à esquerda um saudoso Leonel Brizola, à direita um lunático Enéas Carneiro, mas o que prevalece é a onda liberalizante conduzida pelo sociólogo FHC, e depois amenizada com contornos de justiça social por Lula. O tripé macroeconômico se consolida como dogma inquestionável, a indústria definha e qualquer possibilidade de caminhada autônoma é sufocada. Vivemos de ilusões e tímidas conquistas, impedidos de crescer. A ânsia de libertação nacional é capturada e alimentada como mais uma ilusão pela extrema direita. Bolsonaro vence erguendo a bandeira nacional para impor ainda mais submissão a nossa pátria.
A boa notícia é que a extrema-direita se revelou incapaz de conduzir de fato a necessidade histórica de um projeto nacional de desenvolvimento, pois seus compromissos a impedem de dar esse passo. Essa necessidade permanece latente, carente de uma força política capaz de efetivamente encarnar esse compromisso e cumprir o destino da Nação. Essa tarefa não será cumprida por uma esquerda que não sabe a importância da questão nacional, e chega ao disparate de igualar todo o nacionalismo ao fascismo, se colocando contra o patriotismo, o amor a nossa terra, nossa cultura. Uma esquerda que chega ao absurdo de achar que uma cantora gringa pode recuperar e quase abençoar nossa bandeira.
“Inimigo: a guerra da CIA contra a juventude cubana”
Essa esquerda deveria se iludir menos com os holofotes do Império e aprender mais com a corajosa Cuba. Estou lendo o livro valioso de Raul Capote intitulado “Inimigo: a guerra da CIA contra a juventude cubana”. Nesta obra, Capote narra a sua própria história como agente secreto dos Estados Unidos, colaborando com a guerra híbrida deste país para derrubar o socialismo cubano. Em uma passagem do livro, Capote ainda como espião da CIA, conversa com seu chefe americano que acha que o socialismo cubano cairá da mesma forma que caiu na Polônia, pois igual àquele país, enfrenta graves problemas econômicos, tem uma oposição organizada e tem o apoio do Império. Capote rebate seu chefe e explica a diferença fundamental entre Polônia e Cuba.
O nacionalismo foi uma diferença fundamental entre a Polônia e Cuba. No primeiro país o nacionalismo atuou contra o socialismo, pois o povo entendeu a revolução como uma imposição da União Soviética contra a vontade soberana da população. “Não é o caso cubano, onde o sistema se legitima como parte de um confronto com o inimigo estrangeiro, pois o socialismo cubano é uma questão nacional nascida da tradição histórica e, portanto, totalmente autóctone, não foi imposto sob as esteiras dos tanques soviéticos”, explicou Raul Capote.
Este sentimento de luta contra o sistema existe no Brasil. No entanto, no momento, foi capturado pela extrema direita, que conseguiu caracterizar a esquerda como parte do inimigo a ser combatido. Mesmo que tenha sido hábil para capturar parte desse sentimento de indignação do povo contra a sua espoliação, a extrema direita não conseguiu traduzir esse sentimento num projeto de nação, pois nunca foi essa sua intenção, dominada que sempre esteve pelo imperialismo e pelo rentismo.
O nacionalismo enquanto farsa só teve adesão por se apropriar do legítimo anseio social por um projeto nacional de desenvolvimento interrompido no Brasil desde a Era Vargas. Permanece latente a formação de um novo bloco histórico capaz de colocar em curso o desenvolvimento das imensas potencialidades de nosso povo e de nossa terra. Falta ganhar a esquerda para este projeto. Essa é a tarefa de nossa geração.
Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestre em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da direção estadual da CTB do Rio Grande do Sul.