A semana que acaba hoje foi plena de tensão demonstrando a quem não percebera antes a profundidade das dissensões que vêm de há muito tempo. As incongruências da política econômica dos governos de Lula e Dilma, em sua fase final, já haviam levado a economia à paralisação e o sistema político a deixar de processar decisões. Daí o impeachment do último governo, ainda que baseado em arranhões de normas constitucionais.
Todo impeachment é traumático. Fui ministro de um governo que resultou de um impeachment, o do presidente Itamar Franco. Este, com sabedoria, percebeu logo que precisaria de um ministério representativo do conjunto das forças políticas. Como o PT, que apoiara o impeachment do presidente Collor, se recusava a assumir responsabilidades de governo (com olho eleitoral), Itamar conseguiu a aceitação de uma pasta por Luiza Erundina, então no PT. Mesmo eu, eleito presidente por maioria absoluta no primeiro turno sem precisar buscar o apoio do PT, tive como um de meus ministros um ex-secretário geral do PT.
De lá para cá os tempos mudaram. A possibilidade de algum tipo de convivência democrática, facilitada pela estabilização econômica graças ao Plano Real, que tornou a população menos anti-governo quando viu em marcha uma política econômica que beneficiaria a todos, foi substituída por um estilo de política baseado no “nós”, os supostamente bons, e “eles”, os maus. Isso somado ao descalabro das contas públicas herdado pelo governo atual, mais o desemprego facilitado pela desordem financeira governamental, levou a uma exacerbação das demandas e à desmoralização dos partidos. A Lava Jato, ao desnudar as bases apodrecidas do financiamento partidário pelo uso da máquina estatal em conivência com empresas para extrair dinheiro público em obras sobre faturadas (além do enriquecimento pessoal), desconectou a sociedade das instituições políticas e desnudou a degenerescência em que o país vivia.
A dita “greve” dos caminhoneiros veio servir uma vez mais para ignição de algo que estava já com gasolina derramada: produziu um contágio com a sociedade, que sem saber bem das causas e da razoabilidade ou não do protesto, aderiu, caladamente, à paralisação ocorrida. Só quando seus efeitos no abastecimento de combustíveis e de bens essenciais ao consumo e mesmo à vida, no caso dos hospitais, tornaram-se patentes, houve a aceitação, também tácita, da necessidade de uma ação mais enérgica para retomar a normalidade.
Mas que ninguém se engane: é uma normalidade aparente. As causas da insatisfação continuam, tanto as econômicas como as políticas, que levam na melhor das hipóteses à abstenção eleitoral e ao repúdio de “tudo que aí está”. Portanto, o governo e as elites políticas, de esquerda, do centro ou da direita, que se cuidem, a crise é profunda. Assim como o governo Itamar buscou sinais de coesão política e deu resposta aos desafios econômicos do período, urge agora algo semelhante.
Dificilmente o governo atual, dado sua origem e o encrespamento político havido, conseguirá pouco mais do que colocar esparadrapos nas feridas. Nada de significativo será alcançado sem que uma liderança embasada no voto e crente na democracia seja capaz de dar resposta aos atuais desafios econômicos e morais. Não há milagres, o sistema democrático-representativo não se baseia na “união política”, senão que na divergência dirimida pelas urnas. Só sairemos da enrascada se a nova liderança for capaz de apelar para o que possa unir a nação: finanças públicas saudáveis e políticas adequadas, taxas razoáveis de crescimento que gerem emprego, confiança e decência na vida pública.
É por isso que há algum tempo venho pregando a união entre os setores progressistas (que entendam o mundo e a sociedade contemporâneos), que tenham uma inclinação popular (que saibam que além do emprego é preciso reduzir as desigualdades), que se deem conta que o mundo não mais funciona top/down, mas que “os de baixo” são parte do conjunto que forma a nação e que ao invés de se proporem a “salvar a pátria” devem conduzi-la no rumo que atenda, democraticamente, com liberdade, os interesses do povo e do país.
Não se trata de formar uma aliança eleitoral apenas, e muito menos de fortalecer o dito “centrão”, um conjunto de siglas que mais querem o poder para se assenhorarem de vantagens, do que se unir por um programa para o país. Nas democracias é natural que os partidos divirjam quando as eleições majoritárias se dão em dois turnos, quando os “blocos sociais e políticos” podem ter mais de uma expressão partidária. Mas é preciso criar um clima que permita convergência. E, uma vez no caminho e no exercício do poder, quem represente este “bloco” precisará ter a sensibilidade necessária para unir os que dele se aproximam e afastar o risco maior: o do populismo, principalmente quando já vem abertamente revestido de um formato autoritário.
No quadro atual, entre o desemprego e a violência cada vez mais assustadora do crime organizado, a perda de confiança nas instituições é um incentivo ao autoritarismo. O bloco proposto deve se opor abertamente a isso. Não basta defender a democracia e as instituições, é preciso torna-las facilitadoras da obtenção das demandas do povo, saber governar, não ser leniente com a corrupção e entender que sem as novas tecnologias não há como atender às demandas populares crescentes. E, principalmente, criar um clima de confiança que permita investimento e difundir a noção de que num mundo globalizado de pouco vale dar as costas a ele.
Tudo isso requer liderança e “fulanização”. Quem, sem ser caudilho, será capaz de iluminar um caminho comum para os brasileiros? “Decifra-me ou te devoro”, como nos mitos antigos.
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, Ex-presidente da República