Uma resenha crítica de “O vento sabe meu nome” de Isabel Allende, 2023 Editora Bertrand Brasil.
Por Igor Corrêa Pereira
Antes de começar, cabe o alerta de que se o leitor não deseja saber aspectos da trama, por favor leia o livro antes de ler a resenha, pois não pude evitar alguns spoilers.
No livro “O vento sabe meu nome” de Isabel Allende, conhecemos a trajetória de Samuel e Anita, duas crianças nascidas em períodos e países distintos, que viveram, cada uma do seu jeito, o trauma da separação de suas famílias. Samuel é uma criança judia que teve que se separar dos pais para fugir do nazismo na Áustria durante a segunda guerra mundial, após o episódio que ficou conhecido como Noite dos Cristais. E Anita foi separada da mãe em 2019 depois da tentativa de refúgio nos Estados Unidos da violência em seu país El Salvador.
A trama elaborada pela autora peruana erradicada na Califórnia e que teve que fugir do Chile após o golpe que levou à morte o seu tio Salvador Allende em 1973, é carregado de emoção e profundas reflexões sore o sofrimento humano. Ao mesmo tempo que trata de separações traumáticas, convida a reflexão profunda sobre a essência de humanidade que nos une. Separados que estamos em fronteiras e nacionalidades distintas, esquecemos frequentemente dessa essência. Uma criança austríaca pode sentir tanto medo quanto uma criança salvadorenha. Pais e mães e filhos podem fazer sacrifícios incríveis em épocas e continentes distintos, e a solidariedade pode aflorar independentemente da época e do país.
Lançado em 2023, o livro toca em feridas que sangram, em flagelos longe de serem resolvidos em nossa época. A história do menino judeu Samuel vem à luz no ano em que Israel massacra milhares de famílias palestinas. Uma criança palestina em 2023 sofre menos que uma criança judia na Áustria em 1938? É uma pergunta que se respondida com o coração e a humanidade, poderiam levar ao cessar-fogo em Gaza e a adoção das medidas humanitárias negadas cruelmente pelo regime sionista de Israel apoiado pelo império estadunidense.
Estados Unidos
Os Estados Unidos é um personagem importante na trama de Allende. É neste país que Samuel viverá sua vida adulta, onde se torna um pianista e professor universitário prestigiado e vive o casamento com a irreverente Nadine LeBlanc. E é tentando ingressar neste país que Anita é separada brutalmente de sua mãe Marisol, iniciando uma busca comovente pela mãe com a ajuda de Selena e Frank, uma imigrante mexicana e um italiano em solo americano.
As contradições do país da democracia e da liberdade são expostas. O mesmo solo dos direitos civis, do jazz e que acolheu o jovem Samuel, também causou a violenta separação entre Anita e sua mãe por meio de uma desumana política de imigração, mas não só isso. É o causador ativo das condicionantes que levam milhões de pessoas a fugir desesperadamente de seus países, entre eles El Salvador. A personagem Letícia, fundamental no enredo por ser uma das pontes entre Samuel e Anita, demonstra isso.
Ela só atravessou a nado o Rio Grande carregada por seu pai nos anos oitenta, para fugir do brutal massacre de El Mozote em 1981. O massacre de 800 civis na pequena aldeia rural foi conduzido pelo exército salvadorenho para combater a guerrilha de esquerda da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional. El Mozote era uma aldeia que não apoiava a guerrilha, mesmo assim foram covardemente assassinados. Dentre os mortos, toda a família de Letícia, com exceção dela própia e do pai, que não estavam no local. O massacre de El Mozote foi conduzido com apoio dos Estados Unidos, que teve uma política de fomentar ditaduras nas Américas e pelo mundo em defesa da democracia e contra o comunismo. Dentre elas, a própria ditadura do Chile, que vitimou o tio da autora, como já mencionamos.
Personagens femininas
Outro destaque do livro é a força das personagens femininas. Rachel, a mãe de Samuel, a esposa do judeu Nadine LeBlanc, a empregada doméstica salvadorenha Leticia, a assistente social Selena, sem contar a pequena protagonista Anita, entre outras, todas tem em comum um papel central na trama. As decisões mais relevantes e virtuosas da narrativa cabem às mulheres. Ainda que alguns homens também atuem de maneira decisiva para pelo menos diminuir as tragédias ocorridas, a vilania e a violência é conduzida por homens. O machismo e a violência contra a mulher são retratados em diversas circunstâncias e nuances distintos. Um tema articulado a esse machismo é a mudança de perspectiva das mulheres diante de relacionamentos.
Especialmente Nadine e Selena agirão no sentido de uma maior autonomia frente aos homens, o que coloca em xeque o casamento monogâmico tradicional e a própria noção do que é família e como ela se constitui. Um debate em aberto e profundamente contemporâneo e instigante. Nadine vive em meio ao movimento hippie na Califórnia nos anos setenta, e sua irreverência ao se casar com um judeu sendo de uma família antissemita vai além disso e a leva a não respeitar a fidelidade imposta pelas regras do casamento e a não compartilhar com o marido suas causas em defesa de refugiados. Selena, por sua vez, enredada em um noivado com o caminhoneiro conservador Milosz Dudek, vai aos poucos buscando na sua atividade profissional e militante o objetivo de ser dona do próprio nariz, o que implica não aceitar compromissos matrimoniais, seja com o já citado Milosz, seja com o pretensioso e arrogante advogado Frank Aglieri.
Um potencial dominador
O personagem do advogado ambicioso de um escritório que defende ricos inescrupulosos vai ser transformado pela desconcertante atuação da assistente social Selena Durán, que foge completamente aos padrões estéticos e de valores do jovem, o que o leva a reavaliar suas prioridades. Mesmo a intensa transformação do personagem que adere e passa a apoiar completamente a jornada de Selena não serão suficientes para que ela decida se casar com ele e mesmo ser sua sócia em um futuro escritório de advocacia. Ela argumenta que essa sociedade seria desigual, pois ela trabalharia demais e ele levaria todos os créditos. Frank, que de um tolo pretensioso se transforma em alguém sensível à dor dos refugiados, mesmo com as transformações, será sempre visto como um potencial dominador que não merece inteira confiança. Selena em alguma medida representa um sem número de mulheres que enxergam no casamento um entrave para o desenvolvimento de suas vidas profissionais.
A obra de Allende nos convida a pensar sobre as diversas formas de separação e desenraizamento. O menino Samuel é separado dos pais na infância, para se encontrar com Nadine na idade adulta e depois dela se separar. Terá com ela uma filha que vai gerar um neto, que depois também se separarão dele no sentido de desconexão emocional e de visão de mundo. A pequena Anita sofre os efeitos da separação com a mãe Marisol e se refugia nos sonhos em um país encantado onde ninguém sofre e todos podem estar juntos. Será que somente em sonhos podemos nos unir? O que separa palestinos de judeus, Trump de Biden, os muros que impedem as migrações, a barreira entre homens e mulheres, todas essas fronteiras são intransponíveis? A autora também fala dos encontros. Quando Samuel e Anita se conhecem, as barreiras de língua, de geração e de etnia se desfazem e uma nova família surge.
A leitura deste romance nos convida a pensar sobre as divisões e separações de nosso tempo e com Anita somos desafiados a sonhar com Azabahar, um mundo utópico sem separações ou violência. Seria esse mundo possível? Responder essa pergunta já não é o papel do livro. Ele mostra a porta da unidade humana que é justamente um dos grandes desafios da nossa geração.
Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestrando em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da direção estadual da CTB do Rio Grande do Sul.
Weberson Faustino
Acabo de ler este empolgante enredo. Magnífico. Sou um voraz leitor de bons romances. A maioria por indicação, por ouvir no rádio do carro ou comentários esparsos. Machado de Assis é inigualável. Li há pouco Torto Arado, Ana Karienina, Cem Anos de Solidão e por aí vai. De fato, magnífico e perfeito o título. O Vento sabe meu nome.