PUBLICADO EM 13 de jul de 2023
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Aniversário de Stonewall: capitalismo arco-íris ou libertação LGBTQ?

Por C.J. Atkins

O brinde corporativo com o brasão do arco-íris foi encomendado, os funcionários gays e lésbicas despacharam para Nova York. Os carros alegóricos estão todos projetados e construídos, prontos para rolar pela Quinta Avenida – outdoors coloridos anunciando o quanto amigáveis aos LGTB são esses dias a T-Mobile, MasterCard, TD Bank, Delta Airlines e outros patrocinadores.

Garotos musculosos, celebridades drag-queens, e famílias “não convencionais” vão preencher as ruas, enquanto até quatro milhões de pessoas vão saudá-los pelo caminho. Políticos estarão na mão, fornecendo suas credenciais progressistas. E o Departamento de Polícia de Nova York promete manter todos seguros e assegurar que todos se divirtam.

Cinquenta anos atrás, em 28 de junho de 1969, quando um bar chamado Stonewall Inn, no Greenwich Village, se tornou o marco zero para o movimento dos direitos dos gays moderno, não havia, é claro, patrocinadores corporativos. Não havia aliados políticos em posições de poder. E, ao invés de manter as pessoas seguras, os policiais estavam batendo nelas e as assediando.

Essa foi a noite em que um bando de bichas fartos se levantou, revidou, e lançou uma luta de libertação que transformou o mundo. Com profissionais do sexo trans negras e latinas e drag-queens na vanguarda, os patronos do Stonewall – e muito da vizinhança de Christopher Street – declararam que eles não iam mais se submeter a inspeções genitais, prisões e agressões, que eram regularmente dispensados pelo “Esquadrão da Moral Pública” do Departamento de Polícia de Nova York corrompido pela máfia.

A confrontação que começou no bar se espalhou pelas ruas, com batalhas travadas por várias noites. O primeiro orgulho foi, literalmente, uma revolta.

Libertação gay

Houve rajadas de ativismo gay antes de Stonewall, mas o que o separa foi a mobilização sustentada e politicamente consciente que veio em seu rastro. Um movimento militante surgiu do que pareceu ser uma revolta puramente espontânea. Mas, em muitas maneiras, o tempo era simplesmente certo para uma luta de libertação gay.

Nos anos de 1960, a Revolução dos Direitos Civis dos afro-americanos estava conquistando grandes vitórias, as mulheres estavam exigindo igualdade, e o pequeno país do Vietnã estava lutando pela sobrevivência contra a maior potência imperialista do mundo. Os oprimidos estavam em movimento em todos os lugares – o Stonewall Inn foi onde os gays se juntaram para lutar.

Nos dias que seguiram imediatamente às revoltas de Stonewall, a Frente de Libertação Gay apareceu em cena, seu nome é um tributo deliberado a Frente Nacional de Libertação Sul-Vietnamita. A nova Frente de Libertação Gay não se restringiu apenas a lutar contra a homofobia e a discriminação – ela teve como alvo todo o sistema capitalista e imperialista, junto com todas as suas regras sexuais e de gênero. Seu objetivo era nada menos que a criação de uma nova sociedade. Os ativistas da Frente de Libertação Gay declararam:

“Nós somos um grupo homossexual revolucionário de homens e mulheres com a realização de que a completa libertação sexual para todos não pode vir a não ser que as instituições sociais existentes sejam abolidas. Nós rejeitamos a tentativa da sociedade de impor papéis sexuais e definições de nossa natureza. Nós estamos saindo desses papéis e mitos simplistas. Nós vamos ser quem nós somos. Ao mesmo tempo, nós estamos criando novas relações e formas sociais, que são relações baseadas em fraternidade, cooperação, amor humano, e sexualidade desinibida… nós nos identificamos com todos os oprimidos: a luta vietnamita, o terceiro mundo, os negros, os trabalhadores… todos aqueles oprimidos por essa conspiração capitalista podre, suja, vil e fodida.

O fogo e a ferocidade de seu chamado por solidariedade lembraram as palavras do marxista revolucionário V. I. Lênin, que tinha dito que “a consciência da classe trabalhadora não pode ser genuína consciência política a menos que os trabalhadores sejam treinados a responder a todos os casos de tirania, opressão, violência, e abuso, não importa que classe seja afetada”.

Os paralelos entre a declaração da Frente de Libertação Gay e a teoria marxista são compreensíveis, quando você olha para sua pré-história. O primeiro grupo de direitos gay dos EUA, o Mattachine Society, foi fundado por ativistas que tiveram o seu treinamento político e ideológico no Partido Comunista dos EUA, nos anos de 1930 e 1940. Eles eram liderados por Harry Hay, um membro do Partido Comunista da Califórnia forçado para fora do partido durante os dias do Medo Vermelho de McCarthy, de chantagem e supressão.

Na época do Stonewall, o Mattachine tinha se tornado um protótipo de terno e gravata para a respeitabilidade homossexual de classe média. A perspectiva revolucionária de Hay e dos membros iniciais ligados aos comunistas do Mattachine tinham revivido na Frente de Libertação Gay e outras organizações, contudo, e injetados com uma enorme dose de militância jovem.

Dúzias de seções da Frente de Libertação Gay apareceram nos EUA e outros países. Foram lançadas campanhas contra meios de comunicação anti-gay, com protestos na parte de fora de escritórios de muitos grandes jornais. Protestos anuais comemorando o Stonewall foram organizados, para exigir a transformação social e sexual da sociedade; eles eventualmente se tornaram as Paradas Gays que nós conhecemos hoje. A maior vitória do período foi a campanha exigindo a Associação Americana de Psiquiatria a reverter sua designação de homossexualidade como uma doença mental, em 1973.

Ligações foram forjadas com outros grupos radicais, incluindo o Partido Pantera Negra, assim como membros de formações socialistas e da esquerda trabalhista. Maoístas, trotskistas, social democratas, e outros – quase sempre sem as bênçãos de seus partidos – tomaram papéis de liderança na Frente de Libertação Gay. O Partido Comunista dos EUA, embora tivesse sido o incubador dos primeiros liberacionistas gays, ficou distante nessa época, não querendo se afastar de sua instância de que a libertação gay era um “desvio” das lutas reais, um “problema psicológico… baseado no conceito burguês de masculinidade”. Foram outros 30 anos antes do partido sair totalmente em apoio dos direitos LGBTQ e igualdade.

Mas, a história enterrada há muito tempo do ativismo homossexual socialista do início do século XX foi recuperada. O livro de 2009 de Sherry Wolf, Sexualidade e Socialismo, documenta este momento de despertar e florescer da consciência socialista. O movimento se tornou consciente não apenas de suas raízes, mas também desenvolveu uma compreensão estrutural da opressão. O livro Origem da Família, Propriedade Privada e Estado, de Friedrich Engels, foi amplamente estudado.

A família como ela existe na sociedade capitalista veio a ser entendida não como algum fenômeno natural e eterno, mas como uma instituição social que se desenvolveu em um momento particular na história das primeiras lutas de classes – ela era o primeiro sinal de opressão e divisão de classe.

A seção de Chicago da Frente de Libertação Gay declarou:

“Nossa luta particular é por autodeterminação sexual, a abolição de estereótipos de papéis sexuais e o direito humano para o uso do corpo sem a interferência de instituições de estado legais e sociais. Muitos de nós compreendemos que nossa luta não pode ser bem-sucedida sem uma mudança fundamental na sociedade, que vai pôr a fonte de poder (meios de produção) nas mãos das pessoas, que no presente não têm nada… enquanto nossa luta cresce, vai ser deixado claro pela mudança das condições objetivas que nossa libertação é inextricavelmente ligada a libertação de todos os oprimidos”.

A revolução dá caminho a assimilação

Os liberacionistas viam a opressão das minorias sexuais como inevitavelmente ligada a superestrutura política e socioeconômica do capitalismo. Ganhar o reconhecimento pela sociedade heterossexual ou se integrar em suas normas sexuais e de relacionamento – assimilação – não estava no alto da lista de suas preocupações.

Com o início da prolongada crise econômica no final dos anos de 1970, contudo, muitos movimentos nascidos nas revoltas sociais dos anos do pós-guerra entraram em uma época de contenção. As forças políticas conservadoras estavam em ascensão, e a economia neoliberal eclipsou o período de reforma social. O poder capitalista ressurgente colocou um freio em todos os movimentos de liberdade – fossem os trabalhistas, nacionais, raciais, étnicos, de gênero, ou de variedade sexual.

Para os gays e lésbicas, os anos de 1980 trouxeram um foco no reconhecimento do relacionamento e igualdade sob a lei. A crise da AIDS forçou questões como direitos de visitação em hospitais, autoridade para tomada de decisões para tratamentos médicos, funerais, herança, e outros, para o topo da agenda.

Bastante compreensível em retrospectiva, o impulso geral do movimento de liberdade gay (como muitos outros) começou a mudar. A crescente retaliação de organizações cristãs e outras conservadoras contra a visibilidade gay e lésbica reforçou a virada das energias ativistas na direção do reconhecimento legal e um discurso de direitos liberais. Uma agenda assimilacionista veio ofuscar o impulso liberacionista, que tinha caracterizado o movimento de gays e lésbicas em seu início. Organizações radicais ainda existiam, e às vezes elas se afirmavam com força, como a Queer Nation e Act Up. No final dos anos de 1990, o teórico queer Michael Warner estava lamentando o efeito “normalizador” que a busca por respeitabilidade e aceitação pública estava tendo nas políticas queer. (O termo “gay”, que tinha sido a princípio compreendido para significar homens e mulheres, tinha sido cada vez mais alargado através dos anos, para abranger mais diversidade dentro da comunidade – lésbica e gay, LGBT, LGBTQ, queer, e outros acrônimos e termos mais amplos).

Direitos de casamento e um fim à discriminação se tornaram as demandas dominantes do movimento. A revolução social foi negociada por uma forma de “capitalismo arco-íris”, que podia acomodar muitas demandas por igualdade, mas parou de repente de questionar os fundamentos do sistema socioeconômico.

Pós liberação, pós assimilação?

Retornando a parada do orgulho e campanhas publicitárias que aconteceu no final de junho em Nova Iorque, tendo as corporações mostrado a sua aceitação de funcionários LGBTQ desempenha algum papel positivo, com certeza. Uma nova pesquisa mostra que cerca de metade dos americanos LGBTQ ainda não estão trabalhando, então qualquer coisa que mude uma atmosfera que força as pessoas a se esconder no armário é um ponto positivo em pelo menos alguns respeitos (a despeito da caçada corporativa por “dólares cor-de-rosa”).

Mas, os desenvolvimentos sugerem que muitas pessoas LGBTQ e seus aliados estão procurando por algo mais. As políticas LGBTQ hoje estão em um período transicional. Muitas lutas foram vencidas – como igualdade de casamento e outras – mas há um senso entre muitos ativistas de que a luta por liberdade LGBTQ tem que novamente olhar além de direitos legais e regulamentos.

Pegando uma análise materialista, nós encontramos a sociedade dos EUA mais uma vez em um período de rápida mudança social. A Grande Recessão que começou em 2008 perturbou a dinâmica do capitalismo. A revolução tecnológica e de comunicações está rapidamente alterando o modo que nós trabalhamos e vivemos. A mudança climática e a guerra nuclear puseram questões existenciais na mesa.

E isso se reflete no ativismo, também. Do Vidas Negras Importam, às Marchas das Mulheres, ao crescente interesse no socialismo, as pessoas estão mais uma vez esperando conquistar mais do que apenas se ajustar com o status quo.

O mesmo é verdade para as políticas LGBTQ. Ao lado da parada do orgulho, outra marcha está acontecendo em Manhattan esse fim de semana – uma que lembra os objetivos dos ativistas do Stonewall. A Coalizão Recuperar o Orgulho está organizando a Marcha da Libertação Queer, “uma marcha política das pessoas”, ao invés de uma parada. Eles vão marchar “contra o neoliberalismo e a ascensão da extrema direita, contra a pobreza e a desigualdade econômica, contra a agressão militar dos EUA, e contra a mudança climática” – objetivos que são muito maiores do que um logo de arco-íris pendurado na vitrine de frente de seu banco.

O mundo, como Engels disse, “é um complexo de processos, no qual coisas aparentemente estáveis… vão através de uma mudança ininterrupta de surgir e falecer, no qual apesar de toda a aparente acidentalidade e de todo o retrocesso temporário, um desenvolvimento progressivo se afirmar no fim”.

As ideias de Stonewall vivem novamente, em uma forma nova e atualizada, e a luta pela libertação continua marchando em frente.

C. J. Atkins é editor-chefe do People’s World

Fonte: People´s World

Tradução: Luciana Cristina Ruy

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