Por Carolina Maria Ruy
O mais novo deles é O Poço, filme desagradabilíssimo, lançado em 2020 e dirigido pelo cineasta espanhol Galder Gaztelu-Urrutia.
Com ar de filme experimental/pedreira dos anos 1970, O Poço se passa em uma prisão vertical, na qual os presos ficam ao redor de um poço que entrega comida diariamente. Quanto mais alto o andar, melhor é a oferta de comida. Nos andares inferiores, onde não chega alimento, impera a lei do caos e do terror, onde os homens passam a mutilar e a comer uns aos outros.
Um ano antes de O Poço, foi lançado o outro filme que quero comentar: Parasita, de Bong Joon-ho (Coréia do Sul). Já escrevi em outro artigo que “Em Parasita o pobre é a praga a ser dedetizada”. Acho que isso sintetiza a crítica que tenho ao filme. Como em O Poço, a família pobre de Parasita não tem dignidade e se aproveita de brechas que a família rica da história oferece para desfrutar de luxo e conforto. Os pobres de Parasita, são seres rastejantes das fossas de um submundo fétido e caótico. São pragas a serem dedetizadas.
Tanto em O Poço, quanto em Parasita, grandes dificuldades econômicas, a falta de perspectivas e a fome, resultam em uma total selvageria, falta de princípios e valores. Resultam, em suma, em um retrocesso aos instintos básicos e animalescos.
Visão muito diferente disso sustenta o filme Eu, Daniel Blake, do cineasta Ken Loach, lançado em 2016. Cineasta experiente e engajado, Loach tem toda uma obra dedicada à classe operária e à população mais vulnerável na escala social. Seus filmes são mais do que obras de ficção, eles trazem estudos e denúncias do mundo capitalista.
Em Daniel Blake ele mantem seu foco no heroísmo de homens comuns, mostrando a história de um carpinteiro de cinquenta e nove anos de idade, que sofre um ataque cardíaco e parte em uma empreitada para obter o benefício do Subsídio de Emprego e Apoio (Employment and Support Allowance). Enquanto ele se esforça para atravessar o labirinto burocrático para fazer valer seus direitos, conhece Katie, uma jovem mãe solteira que acaba de se mudar para um alojamento com dois filhos pequenos.
A beleza do filme está no fato de que, como levantou a jornalista Neusa Barbosa (do Cineweb*, Reuters): “Mesmo num cotidiano de privações, Daniel encontra tempo e disponibilidade para ajudar seus jovens vizinhos imigrantes e também Katie, outra vítima da formidável teia da burocracia britânica, que multiplica obstáculos no caminho de quem requer benefícios sociais”.
Daniel, Katie, os vizinhos e as crianças, estabelecem um vínculo de afeto e cooperação, mesmo não tendo qualquer vínculo consanguíneo, e mesmo tendo perfis diferentes. O filme mostra situações realmente penosas e constrangedoras como a insensibilidade dos servidores no atendimento àqueles que precisam – e tem direito – de recursos, além de situações limite, onde Katie é obrigada a recorrer a um banco de doação de alimentos.
São estas as três histórias.
Pode-se argumentar que são visões diferentes de um mundo marcado pela injustiça social. Que são visões que traduzem diferentes experiencias. Mas a minha avaliação é mais dura do que essa relativização.
Embora o filme seja o mais antigo dos três, assisti Eu, Daniel Blake, por último e, ao assisti-lo notei logo uma grande incoerência com relação aos argumentos de O Poço e Parasita.
Ficou claro para mim que ambos sustentam uma metáfora pobre e barata que, no fundo, afirma que quanto mais recursos as pessoas tem, maior a dignidade. São argumentos falsos assentados muito mais em um temor da própria ruína financeira do que em uma compreensão realista das relações humanas.
Pense você, leitor, se já viu alguém com dificuldades financeiras se infiltrar na casa de alguém para se aproveitar dos luxos, ou se já viu alguém cortar pedaços de seus companheiros vivos, frente a falta de alimentos. Agora pense se você já viu algum gesto de solidariedade entre pessoas que tem poucos recursos materiais. Avalio que a visão proposta por Loach sobre o comportamento humano em situações de crise econômica e social é, entre os três filmes citados, a mais fiel ao perfil da classe trabalhadora.
Deduzo que isso se dá porque é muito concreta entre o operariado a noção de que, a despeito de toda a opressão e privação, não há uma saída individual. Por outro lado, as classes mais abastadas, burguesas, imersas na mentalidade que o sistema de troca de mercadorias impõe, só veem salvação individual, porque ganha em cima da perda dos demais.
Desta forma, uma visão que vincula a degradação social e econômica à degradação moral, não corresponde ao conhecimento histórico sobre o comportamento da classe operária.
A visão da decadência da dignidade humana parece aqui, na verdade, refletir um medo da elite em perder seus privilégios. Esta elite, como a que produziu obras como O Poço e Parasita, não pensa em colocar em seu enredo, a solidariedade, as entidades representativas de classe e a luta social.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical
Assista trailer de Eu, Daniel Blake: