Por André Cintra
Duas personalidades negras – a escritora Carolina Maria de Jesus e a antropóloga Lélia Gonzalez – foram homenageadas com estátuas em Belo Horizonte (MG). A inauguração ocorreu no domingo (30), no Parque Municipal. Não sei quem idealizou a homenagem (certamente não foi o prefeito), mas é uma grande conquista.
Quem pesquisa a estatuária brasileira aponta que nossos monumentos reproduzem um ideário branco, misógino e racista. Em São Paulo, meu camarada Edson França investigou os homenageados e concluiu que quase não há negros. Estátuas como a do Borba Gato, um símbolo da escravidão, constituem a regra. Marcos da resistência, o monumento a Zumbi dos Palmares, no Centro Histórico, e a estátua de Luís Gama, no Largo do Arouche, são exceções. [Vale lembrar que Zumbi só foi homenageado em 2016, quando o PCdoB, com Maurício Pestana, ocupava a Secretaria Municipal de Promoção das Igualdade Racial (SMPIR), durante a gestão Fernando Haddad]
Na Bahia – que hoje celebra o 2 de Julho –, uma estátua cada vez mais aclamada é a de Maria Quitéria. Há pouco mais de 200 anos, a militar brasileira se destacou como uma das líderes da Guerra da Independência, a ponto de ter sido recebida e condecorada pelo imperador Dom Pedro 1º. Em 1953, foi reverenciada com a estátua em Salvador (BA). Desde 2018, seu nome está inscrito no Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria.
São Paulo também tem um monumento a Carolina Maria de Jesus, inaugurado em 2022, em Parelheiros, no extremo sul da cidade. A pedido da família, a estátua, inicialmente instalada num parque linear esvaziado, foi realocada para uma praça central do bairro. Na mesma leva, também ganharam esculturas em São Paulo quatro ícones negros – o atleta e bicampeão olímpico Adhemar Ferreira da Silva, o cantor Itamar Assumpção, a sambista Madrinha Eunice e o compositor Geraldo Filme.
O movimento feminista poderia reivindicar para si aquela que provavelmente foi a primeira (e trágica) estátua de uma personagem feminina. Segundo o Antigo Testamento, Deus tomou a decisão destruir Sodoma e Gomorra, mas concedeu a Ló o direito de fugir com a família e se livrar do castigo. Os anjos enviados pelo Senhor deram dois avisos à família: não parem no caminho nem olhem para trás.
Só que a mulher de Ló, tomada pela tentação, virou-se para trás e avistou a chuva de enxofre que consumia as “cidades do pecado” e seus moradores. Não conhecemos o nome dessa figura – nem o papa Francisco saberia dizê-lo. Mas sabemos que a mulher de Ló se transformou para sempre numa estátua de sal.
A Bíblia vende o fato como uma pena pela desobediência a Deus e pela hesitação. Talvez a mulher de Ló estivesse mais preocupada com as filhas e com as demais pessoas que haviam permanecido em Sodoma, fadadas à morte. Seu olhar, nesse sentido, seria de empatia e acolhimento – não de heresia ou insubordinação.
Rubem Braga dedicou uma crônica à “primeira mulher do Nunes”, que era “linda, inteligente, muito interessante, um pouco estranha, judia italiana, rica”, de “cabelos castanhos claros, olhos verdes e uma pele maravilhosa”. O maior dos cronistas brasileiros estava apaixonado por uma mulher que ele nunca viu pessoalmente nem chegou a conhecer por foto. Mesmo assim, dedicou a ela um texto de primeira-grandeza, digno de musas conhecidas e nominadas.
As heroínas brasileiras, como Carolina, Lélia e Maria Quitéria, não eram mulheres de Nunes ou Ló. Independentemente de maridos ou quaisquer outros homens, elas têm nomes, são reconhecidas por suas trajetórias singulares e merecem ser eternizadas em monumentos. É preciso democratizar nossa estatuária.
André Cintra é jornalista
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