Por Mariana Mazzucato (Project Syndicate)
O Consenso de Washington está saindo. Em um relatório lançado em outubro, o Painel de Resiliência Econômica do G7 (onde eu represento a Itália) exige uma relação radicalmente diferente entre os setores público e privado, para criar uma economia sustentável, justa e resiliente. Quando os líderes do G20 se encontraram, em 30 e 31 de outubro, para discutir como “superar os grandes desafios de hoje” – incluindo a pandemia, mudanças climáticas, desigualdade crescente e fragilidade econômica – eles deveriam evitar cair nas suposições desatualizadas que nos colocaram em nossa bagunça atual.
O Consenso de Washington definiu as regras do jogo para a economia global por quase meio século. O termo entrou em voga em 1989 – ano em que o capitalismo de estilo ocidental consolidou seu alcance global – para descrever a bateria de políticas fiscais, tributárias e comerciais sendo promovidas pelo Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Ele tornou-se uma frase de efeito para globalização neoliberal e assim ficou sob fogo – até mesmo das luzes principais de suas instituições centrais – por exacerbar as desigualdades e perpetuar a subordinação do Sul Global ao Norte.
Tendo evitado por pouco um colapso econômico global duas vezes – primeiro em 2008 e então em 2020, quando a crise do coronavírus quase derrubou o sistema financeiro – o mundo agora confronta um futuro de risco, incerteza, turbulência e colapso climático sem precedentes. Os líderes mundiais têm uma escolha simples: continuar apoiando um sistema econômico falido, ou descartar o Consenso de Washington por um novo contrato social internacional.
A alternativa é o recentemente proposto “Consenso de Cornwall”. Enquanto o Consenso de Washington minimizou o papel do Estado na economia e empurrou uma agenda agressiva de livre mercado de desregulamentação, privatização e liberalização do comércio, o Consenso de Cornwall (refletindo os compromissos expressos na cúpula do G7, em Cornwall, último julho) inverteria esses imperativos. Revitalizando o papel econômico do Estado, nos permitiria perseguir objetivos sociais, construir solidariedade internacional e reformar a governança global no interesse do bem comum.
Isso significa que subsídios e investimentos do Estado e organizações multilaterais exigiriam que os destinatários buscassem rápida descarbonização (ao invés de rápida liberalização de mercado, como exigido pelos empréstimos do FMI para programas de ajustes estruturais). Significa que os governos girariam da reparação – intervindo apenas depois que o dano está feito – para a preparação: dando passos com antecedência para nos proteger de futuros riscos e choques.
O Consenso de Cornwall também nos faria sair de corrigir reativamente as falhas do mercado, para proativamente moldar e fazer os tipos de mercados que nós precisamos para fomentar uma economia verde. Nos faria substituir a redistribuição pela pré-distribuição. O Estado coordenaria parcerias público privadas voltadas para a missão destinadas a criar uma economia resiliente, sustentável e justa.
Porque um novo consenso é necessário? A resposta mais óbvia é que o velho modelo não está mais produzindo benefícios amplamente distribuídos – se é que alguma vez o fez. Ele provou ser desastrosamente incapaz de responder efetivamente para choques econômicos, ecológicos e epidemiológicos massivos.
Alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, adotados em 2015, sempre seria difícil, sob os arranjos de governança global prevalecentes. Mas agora, na esteira de uma pandemia, que empurrou as capacidades do Estado e do mercado além do ponto de ruptura, a tarefa se tornou impossível. As condições da crise de hoje fazem um novo consenso global essencial para a sobrevivência da humanidade nesse planeta.
Nós estamos à beira de uma mudança de paradigma há muito esperada. A maioria das instituições econômicas são ainda governadas por regras ultrapassadas, que as torna incapazes de organizar as respostas necessárias para acabar com a pandemia, muito menos alcançar o objetivo do Acordo do Clima de Paris, de limitar o aquecimento global para 1,5 graus Celsius, relativos aos níveis pré-industriais.
Nosso relatório destaca a necessidade urgente de fortalecer a resiliência da economia global contra riscos e choques futuros, sejam agudos (como pandemias) ou crônicos (como riqueza extrema e polarização de renda). Nós argumentamos por uma reorientação radical em como nós pensamos sobre o desenvolvimento econômico – mudando de medir o crescimento em termos de PIB, VAB (Valor Agregado Bruto), ou retornos financeiros, para avaliar o sucesso nas bases de se nós alcançamos objetivos comuns ambiciosos.
Três das recomendações mais proeminentes do relatório dizem respeito a COVID-19, a recuperação econômica pós-pandemia e o colapso climático. Primeiro, nós convocamos o G7 para assegurar igualdade das vacinas globalmente e para investir substancialmente em preparação para pandemia e financiamento de saúde voltado para a missão. Nós devemos fazer um acesso equitativo, particularmente para inovações que se beneficiam de grandes investimentos públicos e compromissos de compra antecipada, uma das principais prioridades.
Nós reconhecemos que isso vai exigir um novo enfoque para governar os direitos de propriedade intelectual. Similarmente, o Conselho da Organização Mundial de Saúde sobre Economia da Saúde para Todos (que eu presido) enfatiza que a governança da propriedade intelectual deve ser reformada para reconhecer que o conhecimento é o resultado de um processo coletivo de criação de valor.
Segundo, nós defendemos o aumento do investimento estatal na recuperação econômica pós-pandemia, e nós endossamos a recomendação do economista Nicholas Stern, que esse gasto seja aumentado para 2% do PIB por ano, aumentando assim $1 trilhão anualmente, de agora até 2030. Mas, reunir mais dinheiro não é suficiente; como esse dinheiro é gasto, é igualmente importante. O investimento público deve ser canalizado através de novos mecanismos contratuais e institucionais, que meçam e incentivem a criação de um valor público de longo prazo, ao invés de lucro privado de curto prazo.
E em resposta ao maior desafio de todos – a crise climática – nós chamamos por um “CERN para a tecnologia climática.” Inspirado pela Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Nota: CERN, na sigla em inglês), um centro de pesquisa orientado para a missão focado em descarbonizar a economia reuniria investimentos públicos e privados em projetos ambiciosos, incluindo remover dióxido de carbono da atmosfera e criar soluções zero-carbono para indústrias “difíceis de abater”, como expedição, aviação, aço e cimento. Essa nova instituição multilateral e interdisciplinar agiria como um catalisador para fazer e moldar novos mercados em energia renovável e produção circular.
Essas são apenas três das sete recomendações que nós fizemos para os próximos anos. Juntas, elas fornecem as bases para a construção de um novo consenso global – uma agenda política para governar o novo paradigma econômico, que já está começando a tomar forma.
Se o Consenso de Corwall vai pegar, ainda está para ser visto. Mas, algo deve substituir o Consenso de Washington, se nós quisermos florescer, ao invés de simplesmente sobreviver, nesse planeta. A COVID-19 fornece um vislumbre dos importantes problemas de ação coletiva nos confrontando. Apenas uma cooperação internacional renovada e a cooperação de capacidades aprimoradas do Estado – um novo contrato social subscrito por um novo consenso global – pode nos preparar para combater as próximas ascendentes e entrelaçadas crises.
Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação e Valor Público na University College London, é Diretora Fundadora do Instituto UCL para Inovação e Propósito Público.
Fonte: Project Syndicate, publicado em 13/10/2021.
Tradução: Luciana Cristina Ruy.