PUBLICADO EM 24 de mar de 2021
COMPARTILHAR COM:

‘Trabalhador brasileiro vive hoje escravidão’, diz Eusébio da Fenepospetro

Confira a entrevista com o presidente da Federação Nacional dos Frentistas (Fenepospetro), Eusébio Pinto Neto

Eusébio: “Vamos manter nossa luta para impedir que retirem ainda mais direitos dos trabalhadores e trabalhadoras” / Foto: Arquivo

Qual é a análise do momento atual e qual é a orientação que deixa aos dirigentes sindicais de todo o país?

O momento atual é de ruptura. Foi rompida toda a organização social e política na qual estávamos amparados, com o desmonte de todas as comissões e representações no mundo do trabalho. Algo que se expandiu para vários outros movimentos sociais, que também foram desestruturados e hoje sofrem ataques e perseguições. O modelo de gestão do governo visa aumentar as transferências de renda do trabalho para o capital especulativo, retira investimentos do setor produtivo e causa ainda mais desemprego. Uma política que eterniza o país nessa situação de alto desemprego e precárias condições de quem continua empregado.

A reforma trabalhista e sindical, que ainda querem aprofundar mais, escraviza o trabalhador e agrava a má distribuição de renda, que já é uma das piores do mundo. O país não vai voltar a crescer e a oferecer vida digna ao trabalhador sem antes ajustar a distribuição de renda e atender carências em vários setores, a começar pela saúde, pela segurança alimentar e pela educação.

Desde o Collor, o modelo nunca deixou de ser neoliberal, mesmo durante o Governo Lula – embora estivéssemos em uma democracia – só que agora a transferência de renda do trabalho para o capital e a precarização do trabalho se aprofundaram. Para o movimento sindical foi um duro golpe, que vai além da retirada da contribuição sindical obrigatória.

Dificilmente vamos voltar ao status quo anterior, com a aprovação no Congresso de uma nova forma de custeio para os sindicatos que seja obrigatória para as categorias. Para evoluir, vamos ter que mudar esse modelo de representação.

Já está claro para as centrais sindicais que isso precisa ser feito?

Ainda não há unanimidade nos modelos até aqui pensados pelas centrais sindicais, provavelmente porque no Brasil as centrais tem várias tendências, mas há experiências hoje praticadas na Europa e EUA que poderiam servir de inspiração. Podemos trazer essas experiências e analisá-las à luz da realidade brasileira para criar um novo modelo.

Outro dia vi um dirigente sindical explicando que, conforme a CCT que o sindicato dele firmou, o trabalhador que não contribuir para o sindicato vai ficar fora do plano de saúde conquistado pela entidade. É por aí o caminho?

Não. Se você representa uma categoria, não pode discriminar o trabalhador, que não é culpado pelo que está acontecendo. Na maior parte dos casos, o trabalhador sequer tem instrução ou consciência política e de classe suficientes para compreender essas transformações. Ele muito raramente entende a concepção da relação capital versus trabalho e fica alienado dessa discussão, não tem culpa do que está acontecendo. Por lei, representamos a categoria e não podemos abrir mão disso, porque nossas entidades foram constituídas com esse objetivo. Se você discrimina os trabalhadores da sua categoria, automaticamente começa a abrir mão dessa representação. Pode até acontecer em situações pontuais, mas não pode ser uma prática consistente.

O movimento sindical precisa encontrar um modelo definitivo de sindicato para implantar no país, para que todos tenhamos segurança jurídica e o trabalhador tenha atendido o seu direito de ser representado por sindicatos legítimos e atuantes. Muito foi tirado dos sindicatos nesse período recente da nossa história…

A classe trabalhadora nacional precisa se reunir em nova grande conferência nacional, a exemplo da Conclat, realizada em Praia Grande (SP), em 1981, em plena ditadura, e que até hoje é considerada um divisor de águas do movimento sindical brasileiro por ter dado origem a algumas das principais centrais sindicais?

Seja qual for o nome, é preciso fazer um encontro nacional do movimento sindical para tirarmos diretrizes, para saber o que nós realmente queremos. É claro que essas mudanças têm que passar por um encontro nacional, para que juntos possamos tirar um norte único.

O Congresso também terá que dar sua contribuição?

Qualquer mudança no movimento sindical vai precisar passar pelo Congresso Nacional. Então, precisamos ter força no Congresso, o que passa pelas eleições de 2022. Não temos nenhuma chance de fazer mudanças profundas agora. Precisamos resistir e jogar todas as energias nas eleições de 2022, para aumentar nossa representação no Congresso. Só assim vamos conseguir fazer mudanças que vão precisar do voto favorável de ⅔ do Congresso, o que não é fácil. Se tivermos o apoio do Poder Executivo, facilita muito, por isso também é tão importante que tenhamos um presidente afinado com as mudanças profundas que o Brasil precisa.

Hoje o movimento sindical e os demais movimentos sociais estão fragilizados para enfrentar o capital. O movimento sindical precisa ter poder e segurança, porque o trabalhador é a parte mais vulnerável da relação. O capital tem vários recursos para resistir, mas o trabalhador não. Além de depender do emprego, depende do salário, que se não corresponder às suas necessidades, o leva a trabalhar e a continuar passando aperto. É o que está acontecendo no Brasil hoje. Grande parte dos trabalhadores brasileiros vive em regime de escravidão, em troca de um prato de comida, sem casa para morar, com problemas de saúde e uma série de outras questões que impactam o seu custo de vida. Se a pessoa paga aluguel, às vezes tem que optar entre pagar aluguel ou comer. Em uma família com um ou dois desempregados, um só trabalhando, provavelmente todos vão passar necessidades. A maioria dos trabalhadores não tem ganho suficiente para, sozinhos, sustentar uma casa. É necessária uma mudança radical na política. Caso contrário, só vamos aprofundar esse fosso.

Para piorar veio a pandemia, que é algo mundial, mas que no Brasil tem efeito ainda mais perverso porque o governo a tratou como se fosse uma brincadeira. A gestão sanitária e de saúde mal feita do governo aprofundou os efeitos da doença. Vamos sair da pandemia em situação de terra arrasada, no fundo do poço, não sabemos o que vai sobrar. Espero que ao menos tenhamos aprendido a lição com essa catástrofe, que nos sirva de aprendizado para que possamos nos reconstruir como uma nação diferente, com um novo pensamento, em que o povo consiga evoluir e não caia mais no conto do vigário.

Estamos sempre à espera de um salvador da pátria?

Nossa nação tem a tendência de cair na conversa desses salvadores da pátria, desde que o Brasil é Brasil. Quando veio a redemocratização, o primeiro cara eleito foi o Collor, que se dizia “caçador de marajás”. Temos que aprender a lição. A classe operária no Brasil forma a maioria dos eleitores, não pode votar no patrão.

Outra questão muito grave no Brasil tem a ver com a infiltração da religião no poder, com uma visão totalmente dogmática do mundo político. Isso não é bom. Historicamente, sabemos que a mistura da religião com a política não traz nenhum benefício para a nação. Hoje, a cúpula da religião tem um status comparável ao dos demais poderes, o que não traz nenhum benefício, só complica ainda mais a política. É preciso haver essa separação, as pessoas precisam escolher seus governantes e votar com independência, não se deixar influenciar por orientações que venham do púlpito das religiões.

Se a única saída é pela política e passa pelas eleições de 2022, como o movimento deve fazer para resistir e acumular forças até lá?

A saída sempre é pela política. Precisamos ter a noção que vivemos em um sistema capitalista, que historicamente tem crises cíclicas. O capitalismo não tem uma vida longa de prosperidade, está constantemente entrando em crises. Os países precisam ter reservas e se preparar para essas crises, para que elas não atinjam de forma tão profunda as pessoas menos favorecidas, que são os trabalhadores. Dentro desse sistema, para o qual não vislumbramos mudanças tão cedo, provavelmente não no tempo das nossas vidas, precisamos nos preparar para reduzir o prejuízo dessas crises. Precisamos de um capitalismo mais humano e de um governo com visão social, que distribua renda, aumente os salários e faça uma reforma fiscal.

 

O Brasil não é um país que está pronto, ainda temos muito para nos estruturar e enormes carências. É um país em construção, que tem muito o que fazer em termos de estrutura, estradas, pontes, etc., tem muito emprego primário para criar e fornecer à população. Por isso precisa de um Estado forte, que fomente o desenvolvimento. Não podemos privatizar tudo, jogar tudo para as empresas e permitir que o Estado abra mão de ser o indutor do progresso.

Falta educação de qualidade, por exemplo. Vamos ficar privatizando o ensino, principalmente no ensino médio e superior? Estamos passando todas as nossas empresas estratégicas – a Petrobras já está praticamente privatizada – todo o nosso sistema de distribuição de água e energia, todas as nossas reservas minerais para as mãos de grandes especuladores, empresas transnacionais, algumas delas estatais de outros países, que estão se apropriando dessas empresas e dessas fontes de recursos. Precisamos ter muito cuidado com isso.

O Brasil precisa mudar totalmente seu projeto de nação, para que possamos trabalhar com um projeto inclusivo. Esse é um desafio para toda a sociedade, especialmente para quem é dirigente sindical, para quem está na política ou nos movimentos sociais. Todos os agentes de transformação precisam saber exatamente o que queremos, para que possamos influir com qualidade nesse processo de transformação. Caso contrário o Brasil nunca vai ser um país na dimensão que ele merece, mas uma nação sempre dependente, subserviente, apesar da nossa extensão territorial, do tamanho do nosso mercado interno, do volume das nossas riquezas naturais e da posição estratégica que ocupamos na América Latina e no mundo.

Precisamos ter uma política à altura desse potencial, uma nação educada, com uma formação política e um pensamento humanista capazes de entender essa importância que o país tem.

Estamos aqui muito vulneráveis em relação às algumas nações que têm olho grande no Brasil, querem nos explorar e nos exploram, porque encontram facilidades, concedidas principalmente por essa direita ultra conservadora e entreguista que hoje está no poder. Eles não tem sentimento patriótico, usam por vezes do nacionalismo como hipocrisia, porque na verdade eles não têm pátria.

A grande elite brasileira tem residências, negócios e dinheiro em todas as partes do mundo, para eles tanto faz estar no Brasil ou em qualquer outro país, porque têm recursos para viver em qualquer lugar. O capital não tem esse problema e as empresas, com as novas tecnologias de comunicação, foram pulverizadas, estão ligadas em rede, com funcionários e departamentos espalhados em várias partes do mundo, controlados em rede. Não há mais concentração de trabalhadores em uma única ou em poucas plantas.

Quem tem a necessidade de ser nacionalista, defender sua bandeira e amar a sua pátria é o povo trabalhador, quem vive do seu suor, a classe média e a classe operária. O grande capital não tem nação, a pátria deles é o dinheiro.

Mas o que o trabalhador pode fazer de imediato?

É preciso ter a capacidade de saber como funciona o sistema por dentro, para ter condições de se defender. Essa é a dificuldade, porque é um sistema complexo. A dificuldade de entendimento é do próprio dirigente sindical, das pessoas que a princípio teriam a obrigação de conhecer como funciona essa engrenagem. Imagine o trabalhador comum! A educação básica do país não dá essa noção ao trabalhador. Se ele não for procurar na literatura ou não beber em outras fontes, nunca terá o conhecimento necessário para ser capaz de entender essa engrenagem. Essa é a grande dificuldade que nós temos.

Sabemos que todas as nações que conseguiram evoluir passaram por grandes sofrimentos, seja através de guerra, da fome ou da doença. Isso tem a ver com esse período que estamos vivendo hoje, no Brasil, onde estamos passando por uma grande guerra. Uma guerra permanente, inclusive, não declarada, mas que mata muitas pessoas em confrontos de classe, seja nos conflitos armados entre o Estado e jovens pobres, quase sempre negros, empurrados para a criminalidade pela desigualdade social; seja pela fome, que voltou com força nas cidades e grotões, depois de ter sido praticamente erradica em anos recentes; seja agora pela doença, que já matou 300 mil brasileiros desde o início da pandemia, diante de um governo que, na luta contra o vírus, apostou no vírus.

Hoje, a responsabilidade das lideranças políticas, sindicais e dos movimentos sociais é se preparar teoricamente para fazer esse embate, que é desafiador, mas também pode ser enriquecedor do ponto de vista do aprendizado.

Temos que nos formar para resistir?

Exatamente!

Aulas, professor!

Fonte: Fenepospetro

ENVIE SEUS COMENTÁRIOS

QUENTINHAS