“Quero ser a pintora do meu país”. Com essa frase começa a retrospectiva que o Museu de Arte Moderna de Nova York dedica este mês à mulher que escreveu essa frase em 1923: a brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973). A exposição é uma viagem de ida e volta entre São Paulo, seu estado natal, e Paris, onde a artista estudou na famosa escola internacional Académie Julian e misturou as ideias da arte moderna com a estética de seu país. Quando terminou o experimento, ela tinha se tornado uma das pintoras mais importantes da história do Brasil e, por extensão, de toda a América Latina.
A amostra tem o valor especial de ser a primeira vez que a autora chega aos Estados Unidos. Já havia sido reconhecida em outras partes da Europa, como quando a Fundação Juan March dedicou-lhe uma exposição em 2009, em Madri, que foi o grande sucesso da temporada. Mas esta é uma das poucas retrospectivas que mostram toda a obra e como sua linguagem visual amadureceu, desde que em Paris aprendeu lições de André Lhote, Albert Gleizes e Fernand Léger até fazê-las suas com as cenas cotidianas e as cores brasileiras.
Luis Peréz-Oramas, ex-curador de arte latino-americana do MoMA, aponta um quadro que, segundo ele, sintetiza a exuberância pela qual se pode reconhecer Tarsila: A Cuca, de 1924. Alude a uma criatura que no folclore brasileiro se dedica a assustar crianças (como o coco espanhol). No quadro, é um bicho inquietante, mas nem um pouco grotesco, que também se encaixa perfeitamente na paisagem, estilizada no estilo cubista, mas a combinação é a mais brasileira possível: linhas curvas e cores fortes. “Ela inventou uma nova forma de figuração para a arte moderna brasileira”, aponta. Outra imagem arquetípica da artista é A Negra, que mostra uma mulher negra inexistente, extraída das (geralmente racistas) lendas brasileiras: alguém com lábios e braços enormes, olhar estático e seios caídos. Atrás dela, as formas abstratas que Alfredo Vopi aperfeiçoaria mais tarde e que se tornariam a norma da arte brasileira a partir da década de quarenta. “Evoca a emancipação racial e política”, diz o curador da exposição.
Também faz parte da retrospectiva aquela que talvez seja sua obra mais famosa, Abaporu, pintada em 1928 como um presente para o marido, o poeta Oswald de Andrade. Representa – por meio de um humanoide desproporcionado, com um pé grande como uma montanha – uma criatura que come carne humana. A antropofagia era uma obsessão da avant-garde parisiense da década de 1920, obcecada com as práticas do canibalismo. “Nasceu assim um estilo distintivamente novo e distintivamente brasileiro”, explica Pérez-Oramas. Mas no Brasil, o quadro foi decisivo para o lugar que Tarsila ocuparia no imaginário coletivo. Como o trabalho pretendia ser um símbolo de como a cultura brasileira ressurgia da “digestão” das influências externas, o célebre sociólogo Sérgio Buarque de Holanda escolheu essa imagem para a capa de seu livro fundamental, Raízes do Brasil, ainda hoje o compêndio definitivo das psicoses do país. Oitenta anos e inúmeras edições com o Abaporu na capa depois, Tarsila é, por irremediável associação, a retratista oficial da alma brasileira.
Tarsila do Amaral ajudou a estabelecer a ideia de que o Brasil pode não ter uma grande tradição de criar tendências, mas pode absorvê-las antes e torná-las mais próprias do que ninguém, talvez a característica mais distintiva de sua cultura. A mostra tem também O Sono, um dos seus poucos flertes com o surrealismo. Embora o conteúdo seja indescritível por natureza, não custa nada associá-lo a outras obras da artista (a palmeira estilizada com sete folhas, presente em muitas de suas pinturas, ajuda a dissipar todo tipo de dúvidas).
A exposição também inclui a pintura Operários, a maior feita pela artista. A própria Tarsila a considerava como sua obra mais importante. Representa uma mudança radical em seu trabalho. Ela abandona o exercício formal da arte moderna para se tornar uma artista mais comprometida com o ativismo político e social. É uma representação da sociedade brasileira moderna.
O destino de Tarsila foi o mesmo de quase todos os que têm uma ideia nova no Brasil: chocar-se contra a opinião da burguesia, que, como lembra Pérez-Oramas, tinha uma visão muito limitada da arte e considerava o trabalho de Tarsila de mau gosto. “Até a década de 1960, o país não estava pronto para aceitar a maneira pela qual ela integrou todos os elementos da cultura brasileira para produzir uma identidade artística distinta”, conclui. “Foi quando uma nova geração de artistas descobriu o poder de sua arte”.
Fonte: El País