Naquele 19 de agosto de 2019, uma densa camada de fumaça passou pelo estado de São Paulo. Em diversas regiões, o céu ganhou um tom que ia do cinza-marrom ao amarelado-alaranjado, que chegou a assustar. E o ar tornou-se muito semelhante ao respirado no Acre, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, sul do Pará e Maranhão durante o final do inverno, com a intensificação de queimadas. No leste paulista, onde estão a capital, Grande São Paulo e todo o litoral, o fenômeno pareceu mais impactante. No meio da tarde de garoa daquela segunda-feira escureceu como o cair da noite, embora não fosse ainda nem 16 horas. Conforme meteorologistas, a mudança na direção do vento das camadas mais elevadas da atmosfera, devido a uma frente fria, soprou a fumaça produzida pelas queimadas que ardiam havia dias em parte da Bolívia, Rondônia e Acre para o sul do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná.
Três dias depois, o presidente da França, Emmanuel Macron disse que a cúpula do grupo dos 7 países mais ricos, o G7, devia discutir as queimadas na Amazônia em encontro realizado no fim de semana seguinte. O que se viu na sequência foi o aumento da pressão da opinião pública internacional sobre o governo de Jair Bolsonaro, que revidou com baixarias, ofensas e uma esdrúxula defesa da soberania nacional sobre o bioma em chamas. Um discurso, aliás, que não foi convertido em ações e políticas efetivas de combate ao desmatamento que está na raiz das queimadas.
O que o desmatamento como projeto de governo tem a ver com a escuridão dos dias
Em abril Bolsonaro assinou decreto criando o Conselho Nacional da Amazônia Legal, conduzido pelo vice-presidente Hamilton Mourão. A estratégia de colocar militares no comando de ações contra o desmatamento ilegal e queimadas é criticada por especialistas e servidores dos órgãos ligados ao Ministério do Meio Ambiente. O argumento é que a preservação da Amazônia requer especialização e não militarização. Colocar o Ibama em segundo plano implica uma lacuna estratégica que o Exército não consegue suprir, já que sua vocação e especialização são outras.
Queimadas na Amazônia
Um ano depois, a situação não é muito diferente. Apesar de o número absoluto de focos de calor deste primeiro semestre ser mais baixo do que o do mesmo período do ano passado, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) alerta para um problema real oculto no dado. O pico de fogo de Roraima, que normalmente acontece entre janeiro e março, foi incomum em 2019, desviando os números para cima. Já nestes primeiros meses do ano, Pará, Mato Grosso, Amazonas e Rondônia, estados mais desmatados, tiveram aumento de queimada em comparação com o mesmo período do ano anterior.
“O pico de fogo nessas localidades acontece entre julho e outubro. São necessárias ações, porque se a situação continuar como está, acabaremos com o mesmo nível de queimada de 2019. É preciso ação integrada dos governos e do Ibama, que infelizmente vem sendo enfraquecido quando deveria ser fortalecido”, destaca a diretora de Ciência do instituto Ane Alencar. Conforme ressalta, o fogo é consequência do desmatamento, em que a vegetação derrubada é incendiada, e da queimada para “reforma” de pastagem sem o devido manejo, que acaba saindo do controle. “Há outras técnicas agrícolas para isso”.
Pantanal em chamas
O aumento do desmatamento na Amazônia está diretamente associado às queimadas no Pantanal, que arde como nunca antes. Nos primeiros dez dias de agosto, ocorreram em Mato Grosso 2.594 focos de queimada, a maior parte em área privada – um número 7% maior do que todo o mês de julho. Isso representa um aumento de 30% em relação ao registrado no início de agosto de 2019. A maior parte deles (1074) ocorreu no bioma Pantanal, seguido do bioma Amazônia (936) focos e Cerrado com 584. O estado é o único do país onde há presença dos três principais biomas.
Segundo o Instituto Centro de Vida (ICV), de janeiro a julho houve no estado aumento de 5% nos focos de calor em comparação com o mesmo período do ano passado (8.776 em 2019 e 9.176 em 2020). O Pantanal é responsável por esse aumento, visto que aumentou sua proporção entre os biomas, de 2% ano passado, para 13% nesse ano. No bioma pantaneiro em Mato Grosso, o aumento é de 771% considerando janeiro a julho (139 focos em 2019 e 1210 em 2020) e de 1173% somente no mês de julho, em que 2019 teve 52 focos de calor e em 2020 foram 662;
“Estudos apontam que a aceleração do desmatamento da Amazônia ao longo dos anos tem encurtado o período de chuvas e as secas se tornaram mais severas na região central e sudeste do país. Esse desmatamento afeta duramente o fenômeno conhecido como rios voadores, no qual a umidade da floresta origina uma grande coluna de água, que é transportada pelo ar a vastas regiões da América do Sul”, afirma o coordenador de Inteligência Territorial do ICV, Vinícius Silgueiro .
Em todo o bioma Pantanal, entre janeiro e julho foram registrados 4.218 focos de calor. O maior número da série histórica de dados do INPE, desde 1998. O cenário mais intenso de focos nesse mesmo período do ano no bioma, ocorreu em 2009, com 2.527 focos. O registrado nesse ano é 186% superior ao mesmo período do ano passado, que foi um ano crítico, com 1.475 focos entre janeiro e julho.
Ameaça ao turismo
O mês de agosto já iniciou catastrófico no bioma Pantanal. Já são 2.170 focos de calor em apenas 10 dias. Esse número já é 29% maior do que todo o mês de julho desse ano. E representa um aumento de 28% em relação ao contabilizado em todo mês de agosto de 2019, em que foram registrados 1.690 focos de calor.
O fogo avança em frentes em Poconé e Barão de Melgaço, que ameaçam o maior polo turístico da região, o SESC Pantanal e a estrada parque Transpantaneira. O município de Poconé é o sexto com mais focos de calor no Brasil e lidera o número de focos de calor esse ano no estado, com 1.406 focos, sendo 606 ocorridos somente nesses 10 primeiros dias de agosto.
Conforme Silgueiro, as chamas resultam da combinação de causas climáticas e culturais. A redução de 50% nos registros de chuva em relação à média histórica e a maior queda do nível do rio Paraguai desde os anos 1960 tem seus efeitos potencializados pela ação humana. Como na Amazônia, as queimadas em propriedades privadas, para limpar o terreno para renovar pastos, saem do controle. Fora a impunidade para crimes ambientais.
“O principal órgão de fiscalização ambiental, o Ibama, vem sofrendo um desmanche tremendo desde o início da gestão federal atual, que passam pela redução de recursos para fiscalização até a exoneração de servidores que vinham cumprindo bem seu papel. E a certeza de impunidade encoraja quem está intencionado em realizar as queimadas de forma ilegal”, afirma.
Para a coordenadora do programa de transparência ambiental do ICV, Ana Paula Valdiones, a perspectiva é que o estado crítico se prolongue pelos dois próximos meses. “Por isso é importante que as ações de combate e de responsabilização aconteçam, que não fique essa sensação de impunidade. E a esperança é que chova para ajudar. Na verdade é mais uma esperança do que expectativa”.
Boiada na pandemia
A gravidade da situação na Amazônia e Pantanal, no entanto, não ganha o mesmo espaço nos noticiários e nem na agenda de autoridades e celebridades estrangeiras, como em 2019. A explicação é a pandemia de covid-19, que só no Brasil já matou mais de 105 mil brasileiros.
“A pandemia tem ocupado espaço diário na mídia e muitas pautas que são também importantes para a sociedade são colocadas em segundo plano. Outro ponto é que, em função da crise, a área econômica vem ganhando a prioridade editorial. Assim, vivemos um pouco o que o Ministro Ricardo Salles demonstrou na reunião ministerial, quando disse que nessas condições o governo pode aproveitar para ir ‘passando a boiada’”, diz o ambientalista Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
E embora a postura do governo federal não tenha mudado – ações recentes reafirmam simpatia por mineradores e desmatadores – a crescente pressão de banqueiros e empresários, que ameaçam cortar investimentos se a Amazônia continuar a ser devastada, tem levado pelo menos à moderação do discurso. Não seria, portanto, ambiente para incentivos explícitos ao dia do fogo. “O governo sofreu um revés econômico forte, de cobrança, tanto da parte de investidores que se recusam a fazer aportes para o Brasil, como de exportadores brasileiros que estão sendo confrontados sobre a regularidade ambiental de seus produtos”, diz Bocuhy.
Brasil perderá trilhões de dólares se não mudar sua política ambiental
Na avaliação do ambientalista, o ministro Paulo Guedes promove uma economia aparentemente dissociada dos princípios basilares da economia moderna, o ESG (Environment, Social and Governance). “Isso ficou demonstrado em sua resposta pouco diplomática a americanos, ao citar um General Custer, do século 19, responsável por chacina de índios – comparando-o aos nossos militares do século 21, ‘bonzinhos’ com os índios. Uma lacuna temporal e conceitual”, diz.
Para Bocuhy, o Brasil caiu na armadilha da falta de regularidade ambiental especialmente da agenda climática. E o ministro Guedes não “levantou um dedo” para corrigir os rumos do governo em direção à uma economia com parâmetros de sustentabilidade ambiental. Ao contrário. Recentemente publicou no Diário Oficial da União recomendação ao governo para que facilite, ainda mais, as regras de licenciamento ambiental para atividades minerárias. “Isso distorce os princípios em que se alicerça o próprio licenciamento e a Política Nacional do Meio Ambiente, estabelecida por Lei”.
Diante de tudo isso, não é difícil que tenhamos novos episódios como o do dia 19 de agosto de 2019. Basta a transposição da fumaça pelas correntes aéreas e de condições de dispersão. “Se estes fatores vierem a ocorrer, teremos nova incidência de particulados decorrentes de queimadas sobre São Paulo”, conclui o ambientalista.
Fonte: Rede Brasil Atual