PUBLICADO EM 02 de out de 2020
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STF ratifica decisão de júri que abre precedente perigoso sobre a vida das mulheres

Foto: Paul Lowry

Por Marcos Aurélio Ruy

“Que o Brasil está entre os países mais violentos contra as mulheres e os LGBTs, todo mundo sabe” afirma Celina Arêas, secretária da Mulher Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

Mas uma decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), tomada nesta terça-feira (29), “faz o Brasil retroceder séculos no âmbito dos direitos humanos e da vida das mulheres”, assinala.

Por 3 votos a 2, a Primeira Turma manteve a decisão do Júri absolvendo um homem que esfaqueou a ex-companheira por suspeitar que ela mantinha relacionamento extraconjugal.  O fato se deu em uma cidade próxima a Belo Horizonte em 2016, quando o algoz foi capturado após fugir e absolvido por esse júri em 2017.

De acordo com informações do policial que prendeu o criminoso para o UOL, o homem confessou o crime ao afirmar ter esfaqueado a vítima por ter visto “várias conversas amorosas no celular dela, sou trabalhador e não posso aceitar de forma alguma uma situação humilhante dessas”.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiram por um novo julgamento, mas o STF ratificou a decisão do júri com base no artigo 5º, inciso 28 da Constituição, que prevê “a soberania dos vereditos” proferidos por júris populares. A Primeira Turma suscitasse relevância poderia levar a questão ao plenário da Suprema Corte. Porque explicam juristas, a decisão do júri é soberana, mesmo por mais absurda que seja e só pode ser anulada uma vez por “decisão manifestamente contrária à prova dos autos”.

Berenice Darc, dirigente da CTB e secretária de Relações de Gênero da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), define a resolução do STF em ratificar a decisão do júri, mesmo com base em artigo do texto constitucional, como “um precedente perigoso porque o Brasil é o quinto país mais violento contra as mulheres e essa decisão do STF pode soar como um sentido de carta branca para matar com a alegação estapafúrdia de ‘legítima defesa da honra’”.

Essa decisão do STF, “é a confirmação do machismo, do preconceito contra o gênero da justiça brasileira”, afirma a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB-SP), que representa o Brasil na cerimônia de abertura do Most Influential People African Descent (Mipad) 2020, pelo qual inúmeros países escolhem os 100 afrodescendentes mais influentes do mundo.

“Estou extremamente preocupada porque estamos ficando cada vez mais atrasados nisso. A mulher está cada vez mais fragilizada, porque ali é o Supremo e faz isso”, alega. Então, “vamos contar com quem para defender o direito à vida sobre qualquer questão de uma suposta honra ofendida?”, questiona

A favor de manter a absolvição votaram os ministros Marco Aurélio de Mello, Dias Toffoli e Rosa Weber. Contra a decisão do júri votaram os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. “Essa decisão retrógrada pode servir como álibi para os homens violentos se sentirem à vontade para esfaquear, matar ou agredir as mulheres motivados por ciúme ou porque suspeitam que a mulher esteja com outra pessoa”, sinaliza Isis Tavares, presidenta da CTB-AM. Por isso, “precisamos nos posicionar firmemente e denunciar esse retrocesso”, reforça.

Na realidade, não existe no âmbito jurídico a figura da “legítima defesa da honra”, como atestam juristas. Aliás, no artigo 27 do Código Penal de 1890 consta a possível alegação de “privação dos sentidos” na prática criminosa. Mas no Código Penal de 1940, ainda vigente no Brasil, isso não existe mais. “Estamos retrocedendo séculos quando os homens eram considerados donos da vida das mulheres”, afirma Berenice.

“Em pleno século 21, o Supremo se posicionar assim, acarreta um grande retrocesso para a justiça brasileira”, acentua. “Retrocedemos séculos, onde as mulheres eram posse dos homens e por isso podiam até matar em nome da defesa honra”.

No livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de 1884, Friedrich Engels (1820-1895) mostra claramente como a propriedade privada foi determinante para a submissão das mulheres, tornando-as verdadeiras escravas do lar e posse dos homens. “A mulher foi à luta, ao mercado de trabalho e batalha pela emancipação feminina contra a ideologia do patriarcado e a cultura do estupro prevalecentes no Brasil”, assinala Celina. E essa “decisão do STF retrocede a todas as conquistas fundamentais para a vida digna das mulheres, com liberdade e respeito”.

A argumentação do advogado do esfaqueador absolvido, José Ramos Guedes ao jornal o Estado de S. Paulo, não deixar margem a dúvida sobre isso. “Ela era a mulher dele e estava fazendo sacanagem com ele. Não tinha necessidade de fazer isso (o crime). Mas fez, o que é que vai fazer?” e “ela fez um curativo no hospital e foi para casa. É uma história entre marido e mulher”.

Para Isis, esse tipo de argumento é utilizado “somente quando os supostamente ofendidos são homens”. Para ela, “se as mulheres agissem da mesma forma violenta, diriam que estão loucas, transtornadas e não se controlaram”. Agora para “os homens a argumentação de que perdeu o controle vale”. Mas “é pura mentira” porque no trabalho o “chefe pode xingar, gritar, humilhar e eles abaixam cabeça e continuam trabalhando”, diz. “Por que em relação às mulheres perdem a cabeça?, questiona.

“Uma decisão dessas pelo Supremo joga pode jogar água abaixo todas as importantes conquistas das mulheres de anos”, define Isis. Ainda mais quando “o avanço de teses extremamente retrógradas de cunho religioso fundamentalista tentam tirar o protagonismo das mulheres e transformá-las novamente em ‘belas, recatadas e do lar’ e submissas ao homem evidentemente”.

Mas “o nosso engajamento por direitos iguais para os gêneros é incessante e permanente. Só pararemos quando nenhuma mulher sofrer qualquer tipo de violência, de abusos”, reforça Celina. No Brasil, “precisamos unir o movimento feminista por mais mulheres em todas as instâncias de decisão do país, assim como em cargos de chefia no mercado de trabalho”.

Fonte: CTB

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