Todos os dias, no caminho para as aulas, alunos têm de saltar os dejetos. “O cheiro é tão forte que a gente tem que fechar as portas e janelas, senão não consegue jantar”, diz a agricultora Regiane Gomes, 43, vizinha da escola.
Em São José de Caiana, o IBGE constatou que apenas 0,7% das casas tem o seu esgoto sanitário adequado. O índice coloca o município na lanterna de um país que ainda sofre para coletar e tratar de maneira devida os dejetos de sua população.
Metade dos brasileiros, o equivalente a cerca de 100 milhões de habitantes, não tem acesso à coleta nem ao tratamento de esgoto.
Por outro critério, utilizado pela ONU, 35% dos brasileiros têm contato com o esgoto de maneira insegura. Sob este índice, o Brasil aparece atrás da média de países de Ásia, Europa e América do Norte, além de Austrália e Nova Zelândia.
Nos últimos anos, o quadro do saneamento no país se manteve basicamente o mesmo. Em 2004, 81% da população tinha acesso a água tratada. Em 2016, esse número foi a 83%. A coleta do esgoto foi de 38% a 52%, no mesmo período. Já o tratamento de esgoto chega só a 45%.
Romper a estagnação no saneamento básico, que é um dos setores mais atrasados da infraestrutura brasileira, é um dos principais desafios do governo Jair Bolsonaro (PSL), a partir de 2019.
O ano de 2018 foi de expectativa por um novo marco regulatório no setor. O governo Michel Temer (MDB) chegou a publicar uma medida provisória que permitia a maior entrada de empresas privadas no ramo tradicionalmente tocado por empresas públicas.
Após pressão dos estados e de parte do setor, que viram o risco de piora do saneamento, o Congresso não aprovou o texto de Temer, o que o fez perder a força de lei.
A principal crítica era que, ao facilitar a entrada de empresas privadas no setor, os municípios que têm maior necessidade de investimentos e menor receita ficariam cada vez mais relegados às empresas públicas.
Esse movimento abalaria o sistema de subsídio cruzado das concessionárias estaduais, em que municípios superavitários ajudam a financiar aqueles que têm prejuízos.
Para Jerson Kelman, ex-presidente da Agência Nacional de Águas e da Sabesp, o que motivou a MP foi a constatação de que investimentos públicos sozinhos não são suficientes para superar o abismo do saneamento no país.
Sancionada em 2007, a Lei do Saneamento estimava que seriam necessários R$ 304 bilhões em investimentos para universalizar o serviço no país. Um estudo do Instituto Trata Brasil aponta que R$ 72 bilhões foram investidos de 2011 a 2016. O ritmo é muito lento e altamente concentrado em estados mais desenvolvidos como SP, Rio e Minas.
Segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria, a lentidão dos investimentos e a discrepância entre os estados é tanta que só em 2054 o país conseguiria levar a todos os serviços básicos de saneamento –muito tempo depois da meta de 2033, firmada pelo Plano Nacional de Saneamento Básico.
A entrada da iniciativa privada traria aporte de recursos, segundo o governo Temer.
“O equívoco [na MP] são as regras que ferem o subsídio cruzado e que tendem a levar o serviço de saneamento cada vez mais para uma escala municipal”, afirma Kelman.
Ou seja, para que uma região tenha um bom serviço e também seja rentável, a lógica de operação tem que envolver mais de uma cidade.
O risco da MP, dizem os críticos, é o aumento da desigualdade no serviço pelo país. A cidade que hoje é mal atendida tende a ficar cada vez pior.
Mesmo após a queda da MP, o texto ganhou interesse do grupo de transição de Bolsonaro. Assim, na última sexta-feira (28), Temer editou novamente o texto, com mudanças pontuais. Por isso, em seu início, o governo Bolsonaro deve se dedicar a negociar com o Congresso a aprovação do novo texto e, caso aprovado, a instalação das novas regras.
Outra mudança significativa, anunciada pelo novo governo, será a união numa mesma pasta dos Ministérios das Cidades, da Integração Nacional e da Funasa (Fundação Nacional de Saúde). Os três cumprem importante papel no diálogo com as prefeituras e na coordenação de projetos de saneamento nas cidades grandes e pequenas.
Édison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil, se diz otimista com a união. “O setor tem se reunido com futuros ministros e membros da transição e está satisfeito com a atenção que o saneamento tem recebido. O setor está esperançoso”.
Para Leo Heller, pesquisador da FioCruz e relator especial da ONU para o direito humano à água, é preciso se atentar qual será o peso do saneamento neste novo ministério. “Se o que é hoje a Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental virar um departamento qualquer dentro dessa estrutura, há o risco de perda da importância do tema”, alerta.
Outra proposta de Bolsonaro, defendida em campanha, é a diminuição da importância do governo federal, com maior predomínio dos municípios. “[A questão do saneamento] é mandar o dinheiro direto para os municípios, para construir casas e para o saneamento também. É a descentralização. E o prefeito vai usar a verba no que achar melhor”, disse ele à Globonews.
A tese, para Édison Carlos do Instituto Trata Brasil, é falha e já se provou ineficiente. “É preciso sim um acompanhamento próximo do governo federal sobre o recurso. Quando ele [Bolsonaro] falou isso, o setor ainda não tinha demonstrado a sua preocupação sobre o tema. Pelo meu entendimento, há uma nova visão do futuro governo. Essa visão de só repassar recursos ficou em segundo plano, ao menos esperamos”.
Em 2017, apenas 42% das cidades brasileiras tinham Planos Municipais de Saneamento, que são previstos desde 2010. O grande gargalo é a falta de equipes técnicas nos municípios capazes planejar o saneamento local.
Esse é o caso de São José de Caiana, onde o índice de mortalidade infantil é de 37,97 a cada 100 mil nascidos vivos (São Paulo tem 11,1; Rio, 11,3), colocando a cidade entre as 300 piores no país. Um habitante é internado por diarreia a cada mil habitantes (São Paulo tem 0,3; o Rio, 0,1).
Segundo o IBGE, em 2017, cerca de um terço dos municípios no país teve endemias ou epidemias relacionadas à falta de saneamento.
Fonte: Folha SP