Trudeau citou como justificativa do governo, “um estado de insurreição apreendida” em Quebec. Mas não havia insurreição em Quebec, apenas as ações criminosas de uma pequena seita de menos de 30 pessoas, autoproclamada “revolucionários”, cujos atos terroristas tinham escalado de bombardeios em caixas de correio durante os anos de 1960, para o sequestro do Comissário de Comércio Britânico, James Cross, e do Ministro do Emprego, Pierre Laporte, em 1970. O governo estava no meio das negociações com a FLQ (Front de libération du Quebec) quando Trudeau invocou o Ato de Medidas de Guerra. Pierre Laporte foi assassinado um dia depois.
A opinião pública em todo o Canadá mostrou que 85% da população, tanto no Canadá de língua inglesa, quanto em Quebec ficaram chocados e repudiaram o assassinato. A afirmação do prefeito de Montreal, Jean Drapeau, de que os cidadãos de Quebec estavam preparando uma “ditadura revolucionária” da FLQ era completamente sem base. Não havia apoio para os atos terroristas da FLQ e nenhuma “insurreição apreendida” em Quebec.
Como Tommy Douglas, líder do social democrata NDP (Novo Partido Democrático), colocou na época, o governo usou “uma marreta para quebrar um amendoim”. O Ato de Medidas de Guerra não foi necessário para lidar com a FLQ – ele foi invocado para aterrorizar o crescente movimento por soberania e igualdade em Quebec, e por direitos trabalhistas ampliados, democráticos e de igualdade em todo o Canadá.
Ao invés de lidar com a questão nacional em Quebec, o governo optou por confronto e repressão. Em Quebec, 497 pessoas foram arbitrariamente presas sem acusação e mantidas incomunicáveis por dias ou semanas, com todos os seus direitos negados. Apenas duas dessas pessoas foram eventualmente descobertas serem membros da FLQ. A maioria era sindicalistas, ativistas cívicos, personalidades e figuras culturais de Quebec, comunistas e outros esquerdistas. A polícia usou a lista PROFUNC (Proeminentes funcionários do Partido Comunista, compilada pela Polícia Montada Real Canadense durante a Guerra Fria) para usar como alvo de prisão e detenção muitos daqueles presos.
Em todo o Canadá, direitos civis e democráticos foram eliminados, incluindo os direitos de liberdade de expressão e reunião, enquanto o governo assumiu poderes ditatoriais. Leis repressivas abrangentes foram postas em prática por ordens do governo em conselho, habilitadas pelo Ato de Medidas de Guerra. O governo visava esmagar a dissidência, silenciar desacordos, criar uma atmosfera de pânico e medo em todo o País. Os poderes absolutos da polícia e dos militares foram usados para acertar as contas com adversários políticos e críticos.
Isso incluía o crescente movimento pela soberania nacional e igualdade em Quebec. Em 1960, os salários em Quebec eram 34% mais baixos do que em Ontario, enquanto por 1970 o desemprego em Quebec tinha subido para 200.000 pessoas – 41% dos desempregados em todo o País. Os empregadores exigiam que os trabalhadores falassem inglês, e os que falavam inglês ocupavam todas as posições de chefia nos locais de trabalho.
A pobreza e moradias em favela estavam generalizadas, junto com condições sociais empobrecidas para a maioria da classe trabalhadora. Os jovens não tinham futuro. A alienação estava generalizada. Essas eram realidades bem documentadas que alimentaram o movimento soberanista e a luta por igualdade nacional e social.
A resposta do governo foi terrorismo de estado. Os crimes cometidos pela polícia e a Polícia Montada Real Canadense estão dispostos no relatório contundente da Comissão McDonald, que enumerou muitos dos atos ilegais cometidos durante essa época, incluindo a “Operação Xeque Mate”, que envolveu um incêndio culposo da Polícia Montada Real Canadense, arrombamentos, escutas, falsificações, aberturas de cartas, invasão de privacidade e a escrita de um falso “FLQ communique”. Os alvos da Polícia Montada Real Canadense desses atos ilegais incluíam o Partido Comunista, sindicatos, organizações agrícolas, Povos Indígenas, o NDP, o PQ (Parti Québécois), e muitos outros. A exposição do relatório era tão condenatória que sua recomendação de que a Polícia Montada Real Canadense fosse removida de funções de segurança foi largamente endossada. Em Quebec, o Inquérito Keable foi atingido e expôs atos ilegais semelhantes pela polícia, Polícia Montada Real Canadense e militares.
Para seu crédito, 16 de 20 membros do Parlamento do NDP votaram contra a imposição do Ato de Medidas de Guerra, depois que o líder do NDP, Tommy Douglas denunciou-o para a mídia e no Parlamento. Quatro Conservadores também votaram contra.
O Partido Comunista imediatamente respondeu com uma declaração contra o Ato de Medidas de Guerra e uma manifestação de protesto no Parliament Hill, em 17 de outubro de 1970, apesar do fato de que os protestos e manifestações tinham sido declarados ilegais e tropas se alinhavam nas ruas em Ottawa e Montreal. Com Montreal sob lei marcial, prisões arbitrárias, detenções, interrogatórios e buscas estavam em andamento na classe trabalhadora e vizinhanças que falavam francês; o Partido Comunista de Quebec também mobilizou seus membros e apoiadores para protestar em Ottawa, condenando o Ato de Medidas de Guerra e a imposição de lei marcial em Quebec e no Canadá.
Em todo o País, os comunistas estavam distribuindo folhetos e falando alto – em sindicatos e organizações de massa, em cartas ao editor e resoluções – contra o Ato de Medidas de Guerra e os poderes draconianos e a repressão abrangente que o governo tinha dado a si mesmo para suspender os direitos civis, democráticos e trabalhistas de todos os cidadãos, e impor lei marcial em Quebec.
O Partido Comunista argumentou que a FLQ e seu pequeno grupo de partidários eram uma consequência da consistente recusa do governo de resolver a desigualdade nacional, social e econômica de Quebec e recusar a reconhecer Quebec como uma nação dentro do Canadá, com direito à autodeterminação nacional até e incluindo o direito a secessão.
O Partido Comunista propôs uma nova, igual e voluntária parceria de nações no Canadá como a única solução democrática para a questão nacional, com direitos nacionais incluindo o direito a secessão embutido em uma nova Constituição. Cada nação teria soberania e o direito de ficar ou deixar uma nova igual e voluntária confederação de nações dentro do Canadá. Isso incluiria Povos Indígenas, Quebec e o Canadá de língua inglesa. A nova confederação teria uma igual representação em uma Casa das Nacionalidades, onde a legislação também teria que passar, como na Casa dos Comuns, para se tornar lei. A Casa das Nacionalidades substituiria o desatualizado e nomeado Senado.
Com cada nação tendo o direito de se separar da nova república confederativa – um direito comparável ao direito de indivíduos ao divórcio – a unidade da confederação é sempre um trabalho em progresso, um problema vivo que exige o trabalho de todos os parceiros para ter sucesso. Mas isso é igualdade real e a solução democrática que o Partido Comunista do Canadá continua a defender hoje.
A Crise de Outubro foi desencadeada pelosa atos terroristas de uma pequena seita, mas foi causada pela união desigual criada na ponta de uma arma, com a derrota dos poderes coloniais franceses em 1763 e as políticas genocidas de sucessivos poderes coloniais e governos canadenses contra Pessoas Indígenas nos últimos 500 anos. Cinquenta anos depois, esse País ainda encara uma crise de confederação que vai continuar a borbulhar e ferver até que seja justamente e democraticamente resolvida.
O uso da força pelo governo Trudeau, em 1970, levou diretamente ao referendo de Quebec de 1980 e 1995 sobre independência, quando as pessoas de Quebec corretamente entenderam que o governo federal dominante nunca reconheceria, nem permitiria a Quebec o direito à autodeterminação nacional. Ao invés de unir o País, o governo federal e todos os partidos no Parlamento ajudaram a dividi-lo mais, com a adoção unânime do Ato de Clareza, uma massiva demonstração do chauvinismo anglo-canadense que continua no presente.
Os Povos Indígenas continuam suas longas lutas pelo reconhecimento de seus direitos como nações e povos, conforme estabelecido na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP, na sigla em inglês), em face das respostas armadas pelo estado canadense ao povo Haudenosaunee, em Kanehsatà:ke (Oka), aos Chippewas de Ketttle e a Primeira Nação Stony Point em Ipperwash, aos Defensores de Ts’Petten, no lago Gustafsen, a Nação Wet’suwet’em. Hoje na Nova Escócia, os direitos e barcos de pesca dos Mi’kmaq estão sendo atacados por racistas armados, enquanto o Departamento de Pesca e a Polícia dos Oceanos não aparece em lugar nenhum.
Ao mesmo tempo, o governo federal continua a apelar das três ordens do Tribunal dos Direitos Humanos Canadense de que ele deve financiar a saúde, educação e serviços sociais para as crianças e juventude indígenas, no mesmo grau que ele financia esses serviços para o resto da população. Além disso, o governo ainda tem que implementar as recomendações da Comissão da Verdade e Reconciliação, ou aquelas do Inquérito sobre Mulheres e Garotas Indígenas Desaparecidas e Assassinadas. Avisos de água fervente continuam a ser a norma em muitas reservas, enquanto as vidas dos Indígenas continuam a ser interrompidas por violência racista, suicídio, altas taxas de vício e encarceramento e desemprego em massa.
Além disso, o racismo, a misoginia e a xenofobia estão mais uma vez crescendo no Canadá, alimentados por reação e movimentos autoritários no Canadá e no estrangeiro. Discursos de ódio e atos criminosos de grupos de ódio são raramente processados, enquanto a polícia e organizações militares são frequentemente incubadores e financiadores para tais grupos de extrema direita.
Cinco décadas depois da Crise de Outubro, o Ato de Medidas de Guerra foi substituído pela Lei de Emergências e o Serviço de Segurança da Polícia Montada Real Canadense pelo CSIS (Serviço Canadense de Inteligência de Segurança) e o CSE (Estabelecimento de Segurança de Comunicações), dando aos governos os mesmos e até maiores poderes para impor lei marcial do que eles tinham em 1970. As novas leis de segurança do estado incluem o Projeto de Lei C-59, o Ato Antiterrorismo, que permite vigilância de massa e troca de informações pela polícia e o estado de segurança, proporciona a polícia e o estado de segurança novos poderes de interrupção, e possibilita julgamentos secretos e decisões sem o devido processo legal, entre outros novos poderes.
Como o Partido Comunista apontou várias vezes ao longo de seus 100 anos de história – quando foi declarado ilegal e seus líderes foram aprisionados e confinados sob o Ato de Medidas de Guerra, e quando outras organizações democráticas incluindo sindicatos, organizações agrícolas, organizações de mulheres, organizações de Negros e Indígenas e imigrantes e minorias foram ameaçados e vitimizados pela polícia política no Canadá – essas agências de segurança de estado e poderes são uma ameaça à democracia e aos direitos civis e de igualdade garantidos a todos sob a Carta de Direitos e Liberdades.
Enquanto essas agências e seus poderes existirem, os direitos democráticos e a própria democracia estão ameaçados no Canadá. A História provou que nós estamos certos.
A luta pela democracia hoje é mais urgente do que nunca. Uma rápida olhada ao sul da fronteira mostra quão rapidamente governos autoritários podem usar esses poderes para tomar o controle e descartar direitos civis e democráticos.
Isso aconteceu aqui no Canadá. Poderia acontecer novamente se o poder corporativo triunfasse sobre o interesse público e direitos trabalhistas civis e democráticos.
Artigo foi produzido pelo Comitê Central Executivo do Partido Comunista do Canadá e publicado em People’s Voice.
Tradução: Luciana Cristina Ruy
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