Eric Gordon: Vamos começar com uma pergunta direta. Como você se tornou um tradutor, Peter?
Peter Lownds: Eu cresci em uma família bilíngue. Meus pais falavam alemão quando eles não queriam que eu entendesse. Isso arrepiava meus ouvidos. Na escola, eu comecei francês na quinta série e latim na sexta, e mantive as duas línguas no ensino médio. Eu fui para Yale e gastei muito tempo no que então era chamado de “casas de arte” lá, e em Manhattan assistindo filmes estrangeiros com legenda. Quando eu tinha dezessete anos, eu vi o filme de Marcel Camus, Orfeu Negro, pela primeira vez. Ele veio a desempenhar um papel importante na minha vida e eu vou usá-lo para ilustrar um dos princípios da tradução: que tudo é uma questão de perspectiva.
Eric: Totalmente. Eu mesmo estou envolvido em mais de um projeto de tradução, então eu acho que sei o que você quer dizer. Mas a experiência de cada um é diferente. Vá em frente.
Peter: Para Sacha Gordine, o produtor do filme, Orfeu Negro era uma adaptação francesa de uma peça do poeta brasileiro Vinícius de Moraes: Orfeu da Conceição, “uma tragédia carioca em três atos,” que passou uma semana no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1956.
Eric: Carioca significa do Rio de Janeiro, certo?
Peter: Correto. Bem, Vinícius recrutou dois talentosos compatriotas para produzir a importantíssima música para a peça: o compositor Antônio Carlos Jobim e Luís Bonfá, um virtuoso guitarrista e compositor estabelecido, que sentava nas sombras do palco enquanto o ator interpretando Orfeu cantava. Vinícius tinha servido como vice-cônsul brasileiro em Paris, antes de pegar uma licença para voltar ao Brasil e trabalhar na peça. Ele detestava a versão simplificada do filme de seu mito transposto, que foi roteirizada pelo diretor Camus e Jacques Viot, pelo qual Gordine exigiu que o trio de brasileiros escrevesse uma nova partitura para que ele pudesse ter uma parte dos rendimentos, que eram substanciais.
Bonfá e Jobim estavam gratos pelo filme, que trouxe atenção para sua música de uma enorme audiência internacional. Mas para os diretores brasileiros do cinema novo, homens como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Carlos Diegues, que tinham que mendigar estoque de filme branco e preto para fazer suas versões neorrealistas da vida da favela, um romance tecnicolor filmado no histórico morro da Babilônia e nas ruas do Rio durante o carnaval era equivalente a uma intervenção colonial, um tapa na cara do Primeiro Mundo.
Da perspectiva de Abdias do Nascimento, que interpretou Aristeu, o amante ciumento de Eurídice, e que, em 1944, fundou o Teatro Experimental Negro, as bases de treinamento artístico para nove membros do elenco totalmente negro da peça, a execução truncada da peça de Vinícius foi uma decepção. Abdias tinha quebrado a linha de cor no Teatro Municipal, em 1945, dirigindo uma produção do Teatro Experimental Negro da peça de Eugene O’Neill, O Imperador Jones. Antes disso, as únicas pessoas negras a pôr os pés no palco estavam lá para limpa-lo. Vinícius financiou a produção de seu próprio bolso e os atores, cantores e dançarinos que Abdias cultivou no Teatro Experimental Negro não eram pagos em semanas. Eles se queixaram para seu mentor e ele escreveu uma carta de advertência ao dramaturgo. Isso terminou no que pode ter sido uma colaboração histórica.
Eric: E tudo isso tem algo a ver com a sua tradução de A Mais Longa Duração da Juventude?
Peter: Abdias foi meu mentor. No inverno de 1969, ele entrou em um café do campus com sua esposa. Eles estavam falando português brasileiro. Eu não tinha falado a língua desde que eu retornei de Recife seis meses antes, então eu me apresentei.
Você fala português, meu filho?
Falo, sim, senhor.
Você é uma dádiva de Deus!
Abdias explicou que ele tinha que se dirigir a Escola de Teatro de Yale no dia seguinte e falava apenas poucas palavras de inglês. Eu interpretaria? É claro! Na tarde seguinte, nós ficamos lado a lado na frente do corpo docente da Escola de Teatro reunido e estudantes. Abdias contou a maravilhosa história da fundação do Teatro Experimental Negro. Ele fez as circunstâncias tão vívidas, a história tão atraente, que eu senti que eu era uma das pessoas de pé em fila no calor tropical para fazer uma audição para o empreendimento teatral revolucionário, que ele lançou na idade de 30 com um anúncio de procura nos jornais do Rio, que de uma vez por todas chamaria a atenção para a invisibilidade artística da maioria étnica do País, os descendentes de milhões de africanos vendidos para a escravidão.
Abdias era feroz e persuasivo. Ele tinha passado um tempo na prisão por suas crenças e fugiu da ditadura que Urariano Mota escreve em “A Mais Longa Duração da Juventude”. Uma das coisas que me atraem ao romance é que o autor fala sobre suas raízes, a perda de sua mãe quando ele tinha cinco anos, sua bebedeira, sua ascendência mestiça, seu apego a um trabalho humilhante em consideração aos camaradas miseráveis que dependiam dele por comida e abrigo. Urariano, como muitas pessoas do Nordeste do Brasil, é uma fascinante mistura de dureza e ternura. Isso permeia sua prosa. A fome, os tempos difíceis, mas, acima de tudo, a aceitação das peculiaridades e paixões das outras pessoas como a expressão de sua humanidade, particularmente sob pressão. A camaradagem foi além das políticas de fidelidade partidária, em um Pernambuco dilacerado durante os anos de guerra civil não declarada, mas real, e luta clandestina sobre que Urariano escreve. Em nenhum lugar isso era mais evidente do que nos mocambos, as favelas ao redor de Recife e Olinda. Essa foi minha introdução a violência da vida cotidiana no Brasil.
Eric: Espere um segundo. Se eu entendo sua linha do tempo corretamente, eu mesmo estava no Brasil durante parte daquele tempo. Era o verão de 1967 – inverno no hemisfério sul, é claro. Eu passei a maior parte do meu tempo no Arquivo Nacional, no Rio, fazendo pesquisa para a minha tese de mestrado. Eu estava consciente da ditadura militar na época e segui o conselho do meu orientador ao pé da letra: mantive a minha cabeça baixa o tempo todo. Mas, o que o levou ao Brasil?
Peter: Isso é tão estranho. Nós não nos conhecemos em Yale, e nós não nos encontramos no Brasil, mas 50 anos depois nós nos achamos em Los Angeles!
De qualquer forma, eu estava no Corpo da Paz da Saúde e Voluntário de Desenvolvimento Comunitário, em Recife e Olinda, no estado de Pernambuco, de 1966 a 1968. Como você se lembra, o envolvimento dos EUA no Vietnã estava aumentando quando nós saímos da faculdade, e por um tempo o Corpo da Paz era um adiamento do serviço militar. Meu treinamento era nos Estados Unidos, em Chicago. A única coisa boa nisso era o programa de línguas. Nós tínhamos cinco falantes nativos, três homens e duas mulheres, todos de diferentes partes do País com dialetos regionais distintos, e dois Voluntários do Corpo da Paz Retornados, todos ótimos. Todo o resto era um encobrimento. Naquele tempo inimaginável antes da internet e dos celulares, a informação era mais difícil para passar por aqui e os graduados da faculdade mantinham o que hoje seria considerado sua virgindade na mídia.
O que arrancou as escamas dos meus olhos foi uma visita de três representantes, todos negros, da perto Fundação de Áreas Industriais, onde o organizador comunitário Saul Alinsky estava ajudando comunidades marginais a exigir que senhores de terra, políticos e líderes empresariais reconhecessem seu poder social, político e econômico. Eles queriam saber o que nós tínhamos aprendido sobre o Brasil. Como nós não tínhamos ideia de quem eles eram, ou porque eles estavam lá, nós sentamos lá, rígidos e mudos.
“Não muito, a parte de algumas frases úteis em português,” eu me voluntariei depois do que pareceu um longo minuto. Era o meu 22º aniversário e silêncios prolongados me deixavam nervoso. O líder, que me olhava como um Pantera Negra à paisana, franziu o cenho: “Nesse caso, você pode não saber que o Brasil contém mais pessoas de descendência africana do que qualquer país, exceto a Nigéria. Ou que João Goulart, o presidente eleito popularmente, foi derrubado em um golpe militar apoiado pela CIA, dois anos atrás, e que Castello Branco, um general do exército cujo nome se traduz por “castelo branco”, está agora no comando.
As pessoas que comprarem “A Mais Longa Duração da Juventude” vão ter uma noção do feliz acaso de nossa colaboração em seu ensaio preliminar, com sua capacidade como meu editor da People’s World, e como o editor de cópia para esse livro, e também do ensaio de José Carlos Ruy e o meu prefácio. O autor, Urariano Mota, me mandou um PDF de seu romance em um ponto quando o abrigo para COVID-19 entrou em vigor em todo o mundo e as vacinas ainda não estavam disponíveis. Ele tinha quase 300 páginas e eu pensei comigo , essa vai ser uma boa maneira de passar as horas.
Mas havia uma outra, ainda mais forte atração – o mundo que ele estava descrevendo era um que eu lembrava e com o qual me importava. Meu tour de dever pelo Corpo da Paz em Recife e Olinda terminou em 1968, e eu voltei para visitar em 1969, ano em que o romance começa, com o encontro de dois amigos em frente a um marco do Recife que eu tinha apadrinhado, o Cinema São Luís, especialmente às 8 da manhã nos sábados, quando eram mostrados filmes da Nova Onda francesa e italianos. Como se viu, Urariano também. Essa foi apenas uma de uma série de circunstâncias que me atraíram para “A Mais Longa Duração da Juventude”. Outras foram o fato de que o autor era um homem mais velho olhando para trás em sua vida, um poeta e fã de jazz, que tinha tido uma infância traumática. Todas essas coisas nós compartilhávamos, apesar do fato que nós nunca tínhamos nos conhecido, ou ouvido um do outro. Você vê o que eu quero dizer por feliz acaso.
Eric: Esse é o primeiro romance que você traduziu?
Peter: Não, o segundo. O primeiro, Animal Tropical (2002), era de um autor cubano, Pedro Juan Gutiérrez. Isso aconteceu através de um interessante conjunto de circunstâncias que eu não vou entrar aqui.
Mas havia mágica nisso. O que os dois livros tinham em comum era que eu tive que trabalhar com um escritor vivo, alguém com quem eu pudesse me relacionar e, no caso de Pedro Juan, encontrar. Eu ainda não me encontrei com Urariano. Nós nunca nos falamos pelo telefone, ou mesmo pelo Skype. Nós permanecemos em contato por e-mail. Eu envio para ele os capítulos do meu trabalho em progresso e ele pareceu geralmente satisfeito com eles. Um trabalho de um tradutor varia de livro para livro. Com “A Mais Longa Duração da Juventude”, eu realmente aprendi muito de você, Eric, como você editou várias provas do livro. O fato de que você tinha editado minhas traduções de despachos da Amazônia para a People’s World, e que nós ambos falamos, lemos e traduzimos do português para o inglês foi tudo uma grande vantagem. Eu estou feliz que essa não foi a minha primeira tradução literária. Embora eu seja mais fluente em português do que em espanhol, Animal Tropical foi um livro mais fácil de traduzir. Ambos eram narrativas em primeira pessoa, com uma quantia justa de diálogos. Pegar a “voz” e o ponto de vista do narrador é essencial em tais casos. Como é achar o jargão americano apropriado para o modo que os personagens brasileiros e/ou cubanos falam e pensam. Com “A Mais Longa Duração da Juventude”, eu anotei certas referências no texto para os leitores que não fossem familiarizados com a cultura e a história brasileiras sejam capazes de consulta-las quando eles leem.
Eric: Eu fiquei feliz de ajudar você e a International Publishers nesse livro. Aliás, para deixar claro, eu também peço por ajuda com o meu trabalho. É sempre bom obter outros pares de olhos em seu trabalho para fazê-lo mais forte.
Peter: Você sabe, o Nordeste do Brasil, como a América do Sul ainda era principalmente agrícola quando eu cheguei. Plantações de cana de açúcar e moinhos proliferavam, e, após a crise dos mísseis, a administração Kennedy temia que a região se tornasse uma outra Cuba. O presidente Goulart era um admirador de Fidel Castro, e tinha tido tentativas sustentadas de sindicalizar os cortadores de cana e os trabalhadores dos moinhos de açúcar em Pernambuco. De fato, o presidente Kennedy tinha marcado para voar para Recife uma semana depois que ele foi assassinado. No final dos anos de 1960, 70% das pessoas da região eram analfabetas. Se eles não podiam assinar seus nomes, eles não podiam votar. Goulart tinha pressionado Paulo Freire em serviço e estava lançando uma campanha nacional de alfabetização baseada nos experimentos linguísticos de Freire com camponeses, pescadores e trabalhadores da construção, nos estados nordestinos de Pernambuco e Rio Grande do Norte, quando o golpe de estado militar apoiado pela CIA ocorreu, no Dia da Mentira, em 1964. Em 1969, quando o livro começa, o regime militar tinha pegado as rédeas firmemente nas mãos e censurava quaisquer notícias que fossem consideradas desfavoráveis à sua causa. Aulas de faculdades eram infiltradas por informantes em roupas civis se colocando como estudantes.
Os personagens de Urariano são comunistas novatos. Eles são membros de grupos de estudantes que se encontram e formam células clandestinas, onde eles são doutrinados com resumos mimeografados das teorias de Marx, Lenin e Mao Tse-Tung. Alguns deles estiveram ou estão em perigo de serem “expostos” como terroristas urbanos. Esse é o caso com o novo amigo do narrador, Luiz do Carmo, e outro militante, Vargas, que tem uma esposa grávida e parece resignado ao martírio pela causa. Ele entra em conflito com um notório agente duplo e eventualmente sucumbe a caça às bruxas. O mesmo vale para Soledad Barrett, uma beleza paraguaia de uma longa linhagem de anarquistas, que treina com Fidel e Che na Sierra Maestra e vem para Recife encontrar seu horrível destino. O romance é cheio de alvoroço e incidentes. Jovens e apaixonam e desapaixonam, são obcecados por sexo, percebem que são sonhadores sem armas ou uma ideologia convincente e seguem suas vidas. Eles ficam deprimidos, famintos por comida e reconhecimento, vão a filmes, leem livros, discutem sobre música e escrevem poesia. Eu conheci pessoas assim em Recife.
Eric: Isso soa tão similar com minhas próprias experiências no movimento estudantil antiguerra e anteprojeto, nos EUA, na mesma época, sob Nixon. Acredite-me, eu reconheci a mim mesmo e ao meu círculo de camaradas e amigos na inexperiência e confusão, e deriva ideológica daqueles anos.
Peter: As mesmas coisas estavam acontecendo em muitos lugares ao redor do mundo então. Em 1969-70, eu ensinava na Escola Americana do Rio, e as coisas mudaram. Ninguém fora da comunidade americana falaria comigo, porque eu tinha toda a boa fé de um agente da CIA – “pálido, masculino e Yale!” Traduzir A Mais Longa Duração da Juventude me deu a chance de encontrar e me envolver com meus colegas revolucionários, todos esses anos depois. Eu apreciei a experiência, mais do que eu possa realmente expressar em palavras. Eu confio que os leitores do livro também vão, e muitos por suas próprias razões subjetivas.
Eric: Obrigado, Peter. Eu acredito que os leitores vão ter uma ideia muito melhor do que esperar quando eles envolverem suas mãos em torno desse novo lançamento da International Publishers.
Fonte: People´s World
Tradução: Luciana Cristina Ruy