PUBLICADO EM 23 de out de 2020
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Pelé: o rei brasileiro que veio de outro planeta

Ao completar 80 anos de idade neste 23 de outubro de 2020, o mais genial dos gênios da bola é lembrado como personagem que interpretou a essência do povo brasileiro.

Foto: Marcelo Casal

por Osvaldo Bertolino

Uma camisa 10 e sua eterna magia. Quando se fala do manto branco do Santos Futebol Clube e do amarelo da Seleção Brasileira, imediatamente vem à mente o maior atleta de todos os tempos – Edson Arantes do Nascimento, ou simplesmente Pelé, o homem que ajudou a parar uma guerra, que ganhou tudo o que um jogador poderia alcançar. Como diz José Macia, o Pepe – seu companheiro do ataque mágico também integrado por Mengálvio, Durval e Coutinho –, Pelé não é desse planeta.

Ano de 1962. Vestido com a camisa 10 do Santos, Pelé domina a bola durante o Mundial de Clubes de 62 na primeira partida contra o Benfica (Portugal), no estádio do Maracanã. Foto: Domício Pinheiro/AE

Pelé e seus companheiros espalharam o Brasil pelo mundo. Uma prova é a profusão de times com o nome Santos pelo planeta afora, um total de 39 equipes homônimas. Só no Brasil, além do clube do litoral paulista, existem nada menos do que dez xarás. Tem Santos em Macapá (AP), Alegrete (RS), Fortaleza (CE), Barra de São Francisco (ES), João Pessoa (PB), Toró (SP), São Borja (RS), São Martinho (SC), Taquara (RS) e Porto Velho (RO).

Recentemente, a imagem do menino Khamis Alghajar, de sete anos, chamou atenção nas redes sociais em todo o mundo esportivo. Ele postou fotos utilizando a camisa do Santos na Síria, sua terra natal. Khamis perdeu parte da perna direita durante a guerra em uma explosão que também destruiu a casa onde sua família vivia. “Na Síria, nós amamos o Brasil, o amor por esportes é muito brasileiro. O Santos vem nos divertindo muito e descobre vários grandes jogadores. Pelé é um super jogador. O Santos é muito famoso aqui. O prazer do futebol existe no Santos”, disse Khamis.

Pelé pertence a uma linhagem que representa a essência do povo brasileiro. Vem das tradições mais remotas dessa nação, que no futebol foi precedido por gênios como Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva (este, além do seu talento, vale registrar que participou do Partido Comunista do Brasil na campanha presidencial de 1945, apoiando o candidato dos comunistas, Yeddo Fiuzza). Ambos emergiram com seus talentos após a Revolução de 1930, que começou a mudar mais radicalmente a face elitista do futebol.

Imagem do jornal Tribuna Popular

As portas para o ingresso triunfal do povo brasileiro no futebol foram efetivamente abertas com a conquista da Copa do Mundo em 29 de junho de 1958. Pela primeira vez na história o mundo viu um time sul-americano levantando a taça em solo europeu. Foi quando o Brasil se tornou “insolente e vencedor”, segundo o dramaturgo e escritor Nelson Rodrigues, o primeiro a chamar Pelé de rei e um dos responsáveis pela popularização do futebol. À época ele escreveu, com razão, que não havia um só personagem da nossa literatura que sabia bater um mísero escanteio.

Alma de vira-lata

Segundo o escritor, antes de conquistar o primeiro título mundial o brasileiro tinha “alma de vira-lata”. Mas, com Pelé e Garrincha, o futebol do Brasil perderia sua “humildade deprimente” e ganharia em qualidade. Ninguém melhor do que Nelson Rodrigues soube louvar o futebol popular – segundo ele tão bonito como “uma paisagem de calendário”. Provocador, intitulou-se reacionário, espicaçou a “esquerda festiva”, os “padres de passeata” e as “freiras de minissaia”.

O escritor criou dezenas de expressões e personagens que ajudaram a formar a mitologia do futebol. Criou o “Sobrenatural de Almeida”, a “Grã-fina das narinas de cadáver”, o “Idiota da objetividade”, o “Narciso às avessas”, o “Príncipe etíope”, a “Lagartixa profissional”, o “Possesso”, o “Quadrúpede de vinte e oito patas” e tantos outros. E o magistral “Sublime crioulo”. “Mantos invisíveis pendem do peito do rei Pelé”, dizia.

Nelson Rodrigues vaticinou-lhe a grandeza em crônica de 1957, quando o garoto começava a brilhar no Santos. Em março de 1958, três meses antes da Copa, ele publicou a crônica “A realeza de Pelé”, na qual profetizou a conquista do título porque agora, com o rei que dribla os adversários como “quem afasta um plebeu ignaro e piolhento”, os “inimigos tremerão”. Antes, na Copa de 1950, o Brasil passou por um trauma definido por Nelson Rodrigues como uma “catástrofe nacional”. “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como Hiroxima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroxima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”, escreveu.

Em sua clássica crônica sobre a famosa partida entre Santos e Milan pelo mundial interclubes de 1963, Nelson Rodrigues escreveu: “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão. E o lindo, o sublime na vitória do Santos é que atrás dela há o homem brasileiro, com o seu peito largo, lustroso, homérico.” À alusão a teoria clássica do drama, estabelecida por Aristóteles, Nelson Rodrigues agregou que a vitória do Santos valeu pela vitória do homem brasileiro.

A ascensão do mulato

Se o futebol é “religião laica do povo”, na bela definição do historiador Eric Hobsbawn, Pelé é a sua divindade. Foi o mestre dos mestres em jogadas mágicas, quando o futebol encontra a arte; aqueles lances que ninguém sabe explicar como acontecem, que exigem uma reflexão a respeito, um esforço qualquer de fruição, de tradução do que é rarefeito, de compreensão daquilo que não é imediato, berrante, visível. O rei santista passava por cima dos zagueiros como Átila, o huno, que cavalgava por sobre os povos que conquistava.

O time bi-mundial

Gilberto Freyre, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo dia 3 de setembro de 1977 intitulado “A propósito de Pelé”, comparou o rei aos escritores Machado de Assis e Euclides da Cunha, ao compositor Heitor Villa-Lobos e ao arquiteto Oscar Niemeyer. O que une todos eles? A genialidade, respondeu. Em Sobrados e Mucambos, publicado em 1936, ele já mencionara “a ascensão do mulato não só mais claro como mais escuro entre os atletas, os nadadores, os jogadores de futebol, que são hoje, no Brasil, quase todos mestiços”. No fundo, ele estava dizendo que o futebol passava por um processo de abrasileiramento.

Gabriel Cohn, professor de sociologia do departamento de ciência política da Universidade de São Paulo (USP), diz que sociólogo no Brasil que não tiver os fundilhos das calças puídos pelas arquibancadas não entenderá este país. Digo mais: quem não conhece a trajetória de personagens como Pelé também pouco sabe sobre a alma do povo brasileiro.

O homem do Brasil

O mesmo pode ser dito sobre outro gênio da sua contemporaneidade, Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, ou simplesmente Garrincha. Quando o Brasil conquistou o bicampeonato mundial em 1962, com Garrincha dando show sem o companheiro genial, que contundiu-se no início da Copa, Nelson Rodrigues, descreveu o seu significado magistralmente.

“É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, esta todo o brasileiro, esta todo o Brasil. (…) O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios”, escreveu.

O auge de Pelé seria na Copa do Mundo de 1970, com o time montado por João Saldanha – as feras do Saldanha – e comandado por Mário Jorge Lobo Zagallo, quando o Brasil conquistou o tri. Perseguido pela ditadura militar por sua militância comunista, Saldanha acabou demitido pela então Confederação Brasileira dos Desportos (CBD), hoje Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Nelson Rodrigues descreveu bem o acontecimento: “Estranho mundo em que não se dá um passo sem esbarrar, sem tropeçar, sem pisar nas víboras inumeráveis. (…) Já sabemos que a competência é amargamente antipatizada no futebol brasileiro. Claro, e repito: a competência tira o pão da boca dos idiotas enfáticos e dos aproveitadores vorazes.”

Osvaldo Bertolino é jornalista e historiador

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