O inquérito da Corregedoria da Polícia Militar sobre as mortes de nove jovens na madrugada de 1º de dezembro durante o “Baile da DZ7”, que ocorria nas ruas de Paraisópolis, concluiu a ação da PM naquele local contribuiu para a tragédia, mas o capitão que investigou a atuação dos agentes disse que eles não devem ser punidos porque agiram “em legítima defesa”. O oficial recomendou o arquivamento da apuração, mas o Ministério Público pediu novas informações e a investigação continua aberta.
As informações sobre o teor do inquérito da Corregedoria foram antecipadas pela Folha de S.Paulo e confirmadas pelo jornal O Estado de S. Paulo. Desde dezembro, o órgão da PM conduz uma apuração sobre as mortes e a responsabilidade dos agentes. 31 policiais estão afastados dos serviços operacionais de rua. O inquérito sigiloso foi concluído no dia 30 de janeiro e remetido ao Ministério Público Militar, que no dia 27 de fevereiro fez os novos pedidos de diligências.
O documento de 146 páginas é assinado pelo capitão Rafael Oliveira Casella e reúne depoimentos de todos os policiais envolvidos na ocorrência. Faz uso também de informações de testemunhas concedidas ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil, que conduz outro inquérito sobre o caso.
“Há a certeza de que as mortes, fatalmente, aconteceram em virtude de uma ação na qual os agentes de segurança pública participaram, pois há probabilidade de que suas condutas provocaram o resultado”, escreveu Casella. “No entanto, fica claro em todos os depoimentos e vídeos que houve agressão por parte daquela multidão contra os militares que tentavam apoiar as primeiras motocicletas”, acrescentou.
As versões dos policiais e das testemunhas, entretanto, divergem.
A PM sustenta que homens atiraram contra agentes, que iniciaram uma perseguição. Essa perseguição teria culminado em uma confusão no baile e levado à correria. Os agentes relataram ter sido agredidos com garrafas, paus, pedras e outros objetos.
Por outro lado, testemunhas civis relataram que, após uma intervenção de policiais militares com bombas, houve correria e as pessoas se aglomeraram em vielas da localidade. Nove jovens morreram por asfixia mecânica característica de pisoteamento, apontaram os laudos.
Uma testemunha protegida declarou que viu de quatro a seis policiais na entrada da viela onde as mortes aconteceram. Eles estavam arremessando garrafas e gritando “vai morrer, vai morrer todo mundo”. A atuação dos policiais nessa viela já havia sido revelada ao jornal O Estado de S. Paulo por uma jovem que relatou ter sido atingida na cabeça por uma garrafa atirada por um policial. Ela precisou levar 50 pontos no rosto.
Protesto
Após a divulgação do inquérito e para marcar os 100 dias da noite em que nove jovens foram, moradores e lideranças de Paraisópolis marcaram um protesto para esta segunda-feira (9).
Eles vão se reunir em frente a viela onde ocorreram as mortes por volta das 17h para pedir justiça pelas vítimas. O ato tem como objetivo cobrar uma resposta do Governador João Doria (PSDB) e do Prefeito Bruno Covas (PSDB), bem como ações em prol da comunidade.
“Essa decisão (que os PMs não devem ser punidos) só aumenta o sentimento de injustiça e de impunidade. É muito grave”, afirma Gilson Rodrigues, presidente da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis.
Cultura da violência
Em entrevista ao jornal O Globo (9/3), o sociólogo Benedito Mariano, de 61 anos, o primeiro ouvidor das Polícias de São Paulo (1995-2000) e também o último a deixar o cargo (único da história a não ser reconduzido pelo governador), tendo seu nome vetado pelo governador João Doria, mesmo sendo o mais votado pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), disse que não concorda com o inquérito da Corregedoria da Polícia Militar.
Para ele o Estado tem responsabilidade pelas nove mortes, mesmo que indiretamente “O governo tem obrigação de indenizar as nove famílias. Acho que o ingrediente político pode ter estado muito presente nesse inquérito”, disse.
Mariano, que lançaria um relatório público sobre o caso Paraisópolis no final do mês, mas foi substituído como Ouvidor no início de fevereiro, afirmou que a ação policial em Paraisópolis se deu em duas partes, a perseguição dos supostos criminosos e o controle de distúrbio, com lançamento de bombas e balas de borracha e que: “Só pelo que a mídia divulgou, já é possível saber que houve conduta inadequada no primeiro momento. O segundo nem deveria ter acontecido. Da perseguição até essa intervenção, demorou de 10 a 15 minutos. Isso é prova inequívoca de que não houve planejamento, foi tudo improvisado, precipitado e desastroso. O Estado tem responsabilidade pelas nove mortes, mesmo que indiretamente. O governo tem obrigação de indenizar as nove famílias”.
A cultura política na polícia paulista, segundo Mariano, contribui para a disseminação violência: “Há uma cultura forte na política de SP, em especial na PM, do ethos do guerreiro, que é a de enfrentar inimigos cotidianamente. Esse inimigo tem cor, classe social, endereço. Cerca de 99% dos mortos pelas polícias são pobres. Desses, 65% são pobres, jovens e negros. A letalidade não é aleatória”. E não há nenhuma medida para reduzir a letalidade “Pelo contrário”, diz ele “acho que a narrativa do governador, indiretamente, induz à maior letalidade. Quando ele faz o discurso da polícia mais forte, mais ostensiva, está indicando isso. Quando ele homenageia no Palácio (dos Bandeirantes) 45 policiais envolvidos em 11 mortes em Guararema, também. Em hipótese alguma se comemora mortes, mesmo que durante o enfrentamento de uma quadrilha do crime organizado”.