Existem muitas maneiras de interpretar Marx. Muitas são legítimas. Mas muitas outras procuram se desfazer de Marx ao invocar a retórica anticomunista eco. O ridicularizam como um determinista econômico estéril ou criticam sua análise e previsões como terrivelmente equivocadas.
Marx nem sempre foi correto (quem é?). Mas ele estava correto ou fazia reivindicações defensáveis com mais frequência do que se imagina.
Então, com o objetivo de refutar alguns dos retratos mais impacientes do grande pensador, aqui estão oito demandas que qualquer interpretação confiável de Marx ou do marxismo deveria incluir.
1 – Marx simplesmente não dispensou o capitalismo, mas ficou impressionado com ele. Argumentou que foi o sistema mais produtivo que o mundo já viu.
A burguesia, durante seu domínio de poucos séculos, desde a revolução industrial de 1750, criou forças produtivas mais massivas e mais colossais do que todas as gerações precedentes juntas. Sujeição das forças da natureza ao homem, maquinário, aplicação da química à indústria e agricultura, navegação a vapor, ferrovias, telégrafos elétricos, limpeza de continentes inteiros para cultivo, canalização de rios, populações inteiras arrancadas do solo – o século anterior tinha mesmo um pressentimento de que tais forças produtivas dormiam no colo do trabalho social?
2 – Marx previu com precisão que o capitalismo fomentaria o que hoje é chamado de globalização. Ele viu o capitalismo criando um mercado mundial no qual os países se tornariam cada vez mais interdependentes.
A burguesia tem, pela exploração do mercado mundial, um caráter cosmopolita para a produção e o consumo em todos os países. Para grande desgosto dos reacionários, domina, sob os pés da indústria, o território nacional onde se encontra. Todas as indústrias nacionais antigas são destruídas ou estão diariamente sendo destruídas…. No lugar do antigo isolamento local e nacional e da auto-suficiência, temos relações em todas as direções, interdependência universal das nações.
3 – Ao contrário das sociedades anteriores, que tendiam a conservar tradições e modos de vida, o capitalismo inventa maneiras novas e alternativas de produzir que afetam a maneira como vivemos. As tecnologias mudam nossas vidas a um ritmo cada vez mais rápido. Produtos antigos devem abrir caminho para novos (e para aqueles que os produzem).
Embora os capitalistas tipicamente retratem isso como um bem puro, ele pode ser profundamente inquietante, mesmo se mudanças específicas forem positivas. Pode levar as pessoas a sentirem que seus valores e modos de vida não têm mais lugar no mundo. Além disso, o emprego de novas tecnologias e maneiras de produzir, na busca de lucro para poucos, pode levar a consequências imprevistas. (Em nossos tempos, sem dúvida Marx indicaria a mudança climática como conseqüência do capitalismo não regulado.)
A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção e, portanto, as relações de produção e, com elas, as relações da sociedade como um todo…. Revolução constante da produção, perturbação ininterrupta de todas as condições sociais, incerteza e agitação sem fim distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas e ultra-congeladas, com o seu leque de antigos e veneráveis preconceitos e opiniões, são varridas, todas as novas formadas tornam-se antiquadas antes de poderem se fixar. Tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado, e o homem é finalmente obrigado a encarar com sentidos sóbrios suas reais condições de vida e suas relações com sua espécie.
4 Empresas poderosas, concentrações de riqueza e novos métodos de produção tornam cada vez mais difícil para profissionais independentes e comerciantes de classe média manter seu status. Eles acabam com o conjunto de habilidades erradas ou trabalhando para empresas que os colocaram fora do negócio. Em outras palavras, Marx antecipou a Walmartificação das sociedades capitalistas.
Os estratos mais baixos da classe média – os pequenos comerciantes, lojistas e comerciantes aposentados em geral, os artesãos e camponeses – afundam-se gradualmente no proletariado, em parte porque seu pequeno capital não é suficiente para a escala exigida pela indústria moderna. E é atropelado pela competição com os grandes capitalistas, em parte porque sua habilidade especializada é inutilizada por novos métodos de produção.
5 Marx não defendeu a abolição de todas as propriedades. Ele não queria que a grande maioria das pessoas tivesse menos bens materiais. Ele não era um utopista anti-materialista. O que ele se opunha era a propriedade privada – as vastas quantidades de propriedade e riqueza concentrada pertencentes aos capitalistas, à burguesia. De fato, no final da seguinte passagem, ele e Engels acusam ironicamente o capitalismo de privar as pessoas de sua “propriedade auto-conquistada”.
“A característica que distingue do comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa. A propriedade privada burguesa moderna é a expressão final e mais completa do sistema de produção e apropriação de produtos, que é baseado em antagonismos de classe, na exploração dos muitos por poucos. Nesse sentido, a teoria dos comunistas pode ser resumida na única sentença: Abolição da propriedade privada. Nós, os comunistas, temos sido acusados do o desejo de abolir o direito de adquirir pessoalmente a propriedade como fruto do trabalho de um homem, cuja propriedade é supostamente a base de toda a liberdade pessoal, atividade e independência.”
Propriedade adquirida por si mesma, auto-adquirida, duramente conquistada! Isso quer dizer, a propriedade do pequeno artesão e do pequeno camponês, uma forma de propriedade que precedeu a forma burguesa? Não há necessidade de abolir isso; o desenvolvimento da indústria já o destruiu em grande parte e ainda o está destruindo diariamente.
6 – Marx pensava que os seres humanos têm uma inclinação natural para se sentirem conectados aos objetos que fizeram ou criaram. Ele chamou isso de “objetificação” do trabalho, com o que quis dizer que colocamos algo de nós mesmos em nosso trabalho. Quando alguém não consegue se conectar com a própria criação, quando se sente “externo” a ela, resulta em alienação. É como se você fosse esculpir uma estátua, então alguém tirou de você, e você nunca teve permissão para vê-la ou tocá-la novamente. Marx argumentou que os trabalhadores estavam em uma posição comparável nas fábricas capitalistas do século XIX.
O que, então, constitui a alienação do trabalho?
Primeiro, o fato de que o trabalho é externo ao trabalhador, ou seja, não pertence à sua natureza intrínseca; que em sua obra, portanto, ele não se afirma, mas nega a si mesmo, não se sente contente, mas infeliz, não desenvolve livremente sua energia física e mental, mas mortifica seu corpo e arruína sua mente. O trabalhador, portanto, se sente fora de seu trabalho, e em seu trabalho sente-se fora de si mesmo; se sente em casa quando não está trabalhando e, quando está trabalhando, não se sente em casa. Seu trabalho, portanto, não é voluntário, mas coagido; é trabalho forçado.
7 – Marx queria que nos libertássemos da tirania da divisão do trabalho e dos longos dias de trabalho, que impedem os indivíduos de desenvolver diferentes tipos de capacidades e talentos. Nós nos tornamos escravos de um tipo de atividade e outras dimensões de nossas personalidades são deixadas de lado, não desenvolvidas. Quando jovem, ele moldou sua visão da seguinte maneira:
“Pois assim que a divisão do trabalho exista, cada homem tem uma esfera particular e exclusiva de atividade, que é forçada sobre ele e da qual ele não pode escapar. Ele é um caçador, um pescador, um pastor ou um crítico, e deve permanecer assim, se não quiser perder seus meios de subsistência; na sociedade comunista, onde ninguém tem uma esfera exclusiva de atividade, mas cada uma pode realizar-se em qualquer ramo que deseje, a sociedade regula a produção geral e assim possibilita que faça uma coisa hoje e outra amanhã, caçar de manhã , pescar à tarde, pescar gado à noite, criticar depois do jantar, assim como tenho vontade, sem nunca me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.”
8 – Marx não era um determinista econômico. O que importa é como as pessoas pensam e agem. Em uma carta escrita por Engels depois da morte de Marx, ele enfatizou a importância da economia, mas também tentou deixar claro que Marx e ele foram mal interpretados, e foi parcialmente culpa deles
“Marx e eu somos parcialmente culpados pelo fato de que os mais jovens às vezes depositam mais ênfase no lado econômico do que é devido. Tivemos que enfatizar o principal princípio vis-à-vis nossos adversários, que o negavam, e nem sempre tínhamos tempo, lugar ou oportunidade de dar a devida atenção aos outros elementos envolvidos na interação. Mas quando se tratava de apresentar um aspecto da história, isto é, fazer uma aplicação prática, era uma questão diferente e não havia erro algum. Infelizmente, porém, acontece com demasiada frequência que as pessoas pensem que compreenderam completamente uma nova teoria e podem aplicá-la sem mais demora desde o momento em que assimilaram seus princípios básicos, e mesmo eles nem sempre corretamente. E eu não posso isentar muitos dos ‘marxistas’ recentes desta censura, pois o lixo mais surpreendente foi produzido neste trimestre, também …”
Mitchell Aboulafia é professor de filosofia no Manhattan College, em Nova York.
Fonte: Jacobin; tradução: José Carlos Ruy