O período proposto pela exposição O Rio do samba se divide em 3 momentos. No primeiro, Da herança africana ao Tudo começou com um inesperado “encontro cósmico”. Evandro Salles, diretor cultural do Museu de Arte do Rio (MAR), caminhava pensando na vida quando deu de cara com um grupo de sambistas vestidos a caráter: “Fiquei tão impressionado com a beleza e a magia daquilo que tive a ideia de fazer uma exposição sobre a história do samba”.
O Rio do samba: resistência e reinvenção é o resultado daquele encontro inesperado: uma grande exposição, contendo um total de 800 peças entre pinturas,fotografias, filmes e documentos, além de 5 instalações. A mostra abriu suas portas ao público neste sábado 28 de abril. “O samba constitui um elemento estrutural da identidade cultural brasileira”, explica Salles, um dos 4 curadores da mostra, com Nei Lopes, Clarissa Diniz e Marcelo Campos. “De um ponto de vista social e cultural mais amplo, o samba aponta a uma resistência histórica frente ao escravismo, à colonização e às tentativas de supremacia cultural branca que nega esse papel estruturante das culturas negras e índias na formação do Brasil”.
A exposição, com a qual o MAR comemora seus 5 anos de existência, dá atenção especial às relações entre o samba e as artes visuais, a partir do movimento modernista: “A exposição revela como toda essa cultura africana que resistia de forma marginal e submetida foi tomando espaço até configurar-se como uma expressão da identidade nacional na obra de Di Cavalcanti, Portinari, Djanira… e até Hélio Oiticica, no que ele chamou de “parangolés”, ou, mais contemporaneamente, Ernesto Neto, criador de uma instalação interativa que terá lugar de destaque na Sala de Encontro, junto com o carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira”.
Em destaque na porta de acesso à exposição, uma frase sintetiza o espírito da mesma: “O samba é o dono do corpo”. “A questão do corpo nessa cultura é fundamental enquanto um instrumento de relação com o divino”, frisa Evandro Salles. “O samba toma o corpo e traz o sujeito a essa relação cósmica com as forças do universo, pode-se dizer que teatraliza sua presença no mundo… acho que o que faz o samba uma coisa especial é justamente essa relação metafísica e física do sujeito com o universo”
Rio negro, é abordada a chegada do escravo à Pequena África carioca, cenário privilegiado das primeiras reuniões de afrodescendentes, conhecidas inicialmente com o nome de “sembas”. “Quando os negros africanos de origens diversas se encontravam, cantavam para tentar sobreviver à dura vida que levavam”, explica o também curador Marcelo Campos. “Ainda que ele seja muito vinculado a uma condição de alegria, o samba vem como essa tentativa de curar essa ferida, e sempre foi acompanhado por essa marca e essa relação que ele tem com as comunidades e resistiu nos lugares mais pobres, nos morros, nas favelas…”.
O período da exposição acompanha a viagem do sambista desde a pós-escravidão e a marginalização no exílio periférico e sua volta à vida pública, com os primeiros carnavais. “O que era uma manifestação que ocorria no fundo do quintal, de noite, transforma-se em uma outra coisa no momento da expansão urbana do Rio de Janeiro”, diz Salles. “A própria história das escolas de samba está ligada a essas expansões que levaram o samba aos subúrbios, primeiro, e às grandes avenidas, depois. É assim que o samba vai se adaptando e se reinventando a cada momento histórico…”.
O núcleo Da Praça XI às zonas de contato finaliza com o samba transformado em espetáculo radiofônico e teatral. Na opinião de Marcelo Campos, “o samba não morreu porque os sambistas souberam negociar com as forças conservadoras para sobreviver. Por exemplo, quem vai apresentar o samba na rádio e nos teatros em um primeiro momento não foram sambistas, mas cantores brancos, era Carmen Miranda… ocorreu uma estilização do samba até que os sambistas recuperaram o controle. Mas isso é a história do samba, o tempo todo ele vem resistindo, se reinventando, por conta disso, e por isso ele sobreviveu”.
Em O Rio do samba é possível observar uma coleção de joias que pertenceram a Carmen Miranda junto com um amplo mostruário de fantasias carnavalescas. “Uma de nossas dificuldades na curadoria foi justamente mostrar essa separação: escola de samba é uma coisa, samba é outra”, esclarece Marcelo Campos. “As escolas de samba estão presentes na história do samba, mas outras coisas também estão presentes e não estão nas escolas de samba”.
A exposição termina com o retorno das rodas de samba aos quintais, o renascimento do bairro da Lapa e o surgimento de novos atores como Teresa Cristina e o grupo Galocantô. “Hoje temos mais de 200 rodas de samba espalhadas por todos os lugares, com músicos que vivem dessas apresentações, com novos compositores, e não tem fim…”, conclui Campos. “Existe até quem acredite que o compasso do funk vem do compasso binário do samba e se reproduz na batida do funk…”.
A mostra vai ocupar o museu por um ano inteiro, com um recheado programa de shows, conferências e atividades lúdicas. “Eu acho que esse é um momento político importante de reafirmação da formação do Brasil a partir da cultura negra e africana”, diz Evandro Salles.
Fonte: El País