Por José Carlos Ruy
Machado de Assis é uma unanimidade brasileira – e tem, como todas as unanimidades, seus detratores, aqueles que não concordam com elas, destacando-se entre eles o pioneiro dirigente comunista brasileiro, Octávio Brandão, que, em 1958, tentou desclassificá-lo e o chamou de niilista, palavra que usou para significar cético, cínico e pessimista.
A leitura feita por Brandão da obra de Machado de Assis ilustra os preconceitos de seu notório sectarismo. Preconceitos que o impediram de compreender a crítica social sútil que há naquela literatura notável, reduzindo-a ao realismo ao pé da letra que muitos confundem com “materialismo”.
Confusão felizmente não cometida por outro pioneiro do marxismo no Brasil, Astrojildo Pereira, que pode compreender a maravilha dialética representada pela obra machadiana, como deixou registrado em “Machado de Assis – Ensaios e Apontamentos Avulsos”.
Qualquer leitor que confunda – e não perceba – a relação dialética que há na obra de Machado de Assis, entre o escritor autor dos romances, contos e novelas, e o narrador que apresenta ficcionalmente os relatos, não compreenderá a fineza da crítica social nela apresentada – e que muitos já descreveram como a “ironia” machadiana. Ironia presente em grandes romances como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), “Memorial de Aires” (1881), “Quincas Borba” (1891), “Dom Casmurro” (1899), “Essaú e Jacó” (1904) e em contos e novelas como “O País das Quimeras” (1862), “O Anjo Rafael” (1869), “Teoria do Medalhão” (1881), “O Alienista” (1882), “O Espelho” (1882). “Pai contra mãe” (1906) – a obra de Machado de Assis é extensa e nela não há o “niilismo” criticado por Brandão, embora haja narradores “niilistas”, céticos e pessimistas – retratos dos membros da oligarquia e da aristocracia descritos criticamente por Machado de Assis, que manifesta através dos personagens assim construídos sua própria opinião crítica em relação a comportamentos que viu em seu tempo – e me limito aqui a buscar exemplos em contos e novelas, deixando de lado os romances, nos quais são abundantes.
O grande realismo que, acompanhando Astrojildo Pereira, se pode chamar de dialético em Machado de Assis aparece quase sempre na descrição do caráter de seus pesrsonagens. Autor que escreveu há mais de cem anos, sua obra é extremamente atual; apresenta com crueza o cabotinismo, a alienação e a irracionalidade de tanta gente da classe dominante brasileira – netos e bisnetos daqueles cujo caráter duvidoso descreveu em personagens como o Dr. Antero, de “O Anjo Rafael”. Ou nos conselhos que, em “Teoria do Medalhão” (1881), o pai dá a Janjão para possa parecer culto e “esperto”, e vencer na vida numa sociedade em que a aparência pessoal é sobrevalorizada.
Tema da aparência pessoal repetido, de certa maneira, e em outro formato, em “O Espelho”, cujo subtítulo é
“Esboço de uma nova teoria da alma humana”. O protagonista é um jovem que fora indicado como Alferes da Guarda Nacional. E se rende às aparências de tal maneira – o “alferes eliminou o homem”, registra a narrativa – que, quando se vê só, sem a presença das pessoas que o homenageavam, entra em profunda crise de identidade. Da qual se recupera quando, vestido com a farda de alferes, vê sua imagem refletica no espelho e volta a entender-se como pessoa.
Como registrou a análise de Astrojildo Pereira, Machado de Assis foi “um dialético inato, sua maneira de pensar era dialética, e seu pensamento aparece impregnado de elementos dialéticos”, embora seja incorreto e “insensato supor ou concluir que Machado de Assis foi um ‘materialista dialético’”.
Como escritor genial, Machado de Assis – que se referia, com frequência, aos “tempos do rei” – refletiu as contradições de sua época. Nisto, diz Astrojildo Pereira, reside “um dos mais luminosos sinais da sua grandeza”.