Por Marcos Aurélio Ruy
Bela Gil explica essa conotação em seu livro, recém-lançado, Quem Vai Fazer Essa Comida? – Mulheres, Trabalho Doméstico e Alimentação Saudável, da Editora Elefante. A autora defende a valorização do trabalho doméstico e a produção agroecológica dos alimentos como uma das formas de uma vida mais saudável e de se combater a discriminação e a violência de gênero.
Ela cita o livro O Lado Invisível da Economia: Uma Visão Feminista, de Katrine Marçal, para quem “assim como existe um ‘segundo sexo’, existe uma ‘segunda economia’”. A sociedade não vê como uma questão de trabalho quem faz a comida, quem cuida dos filhos e da casa. Mas, para Bela, fortemente baseada na filósofa Silvia Federici, o trabalho doméstico, que não é remunerado, é um dos principais pilares de sustentação do capitalismo, que explora essa mão de obra, quase como um trabalho escravo e lucra muito com isso.
Outro ponto fundamental do livro é sobre o agronegócio com uma produção altamente mecanizada, portanto, com poucos empregos, para o mercado global, ou seja, para a exportação; e essa transformação dos alimentos em commodities, é vista apenas como mercadoria para gerar lucro, o que explica por que um país com extensas terras agricultáveis como o Brasil tem milhares de pessoas passando fome. Assim é o capitalismo.
O livro destaca a forma adotada pelo capitalismo para catalisar a chamada “generosidade feminina” e explorar as mulheres no trabalho doméstico, em ligação com o campo, onde a terra seria a mulher. A música O Cio da Terra, de Chico Buarque e Milton Nascimento, ilustra tem essa temática. Abaixo interpretada por Pena Branca & Xavantinho
Vânia Marques Pinto, secretária de Política Agrícola e Agrária da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e de Política Agrícola da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag), defende a valorização da agricultura familiar e a reforma agrária como formas de fomentar a produção de alimentos saudáveis, sem agrotóxicos.
Ela concorda com Bela sobre a necessidade de “educar as pessoas para consumir alimentos in natura”, mas para isso “é necessário uma série de políticas públicas e financiamentos para que esse alimento possa chegar à mesa das brasileiras e brasileiros”, porque “os alimentos ultraprocessados são muito mais baratos”. E essa reforma agrária deve “contemplar as trabalhadoras e trabalhadores do campo”.
De acordo com Vânia, a chamada Revolução Verde, “a partir da metade do século 20, ampliou a produção, introduzindo tecnologias duradouras, como os transgênicos, mas também trouxe desafios como o uso excessivo de agrotóxicos”. Coisa que Bela Gil critica de maneira incessante, ao defender que a comida seja preparada em casa ou que as pessoas tenham condições de comer em restaurantes que façam comida de verdade.
Bela traça um panorama histórico de como o trabalho doméstico recaiu e recai quase totalmente sobre a mulher, e de como o capitalismo reciclou e se apoderou desse trabalho não remunerado para alavancar a concentração de riquezas e, por isso, novamente com base em Silvia Federici, ela defende a remuneração do trabalho doméstico, além de uma divisão equânime desse trabalho entre os sexos.
A chef de cozinha defende também a importância de cozinhar e que isso seja feito tanto pela mulher quanto pelo homem. Mas para isso acontecer é necessário haver tempo, o que leva à necessidade de redução da jornada de trabalho, maior tempo de licença maternidade e de paternidade, uma reforma agrária que reforce a produção agroecológica, portanto com preservação ambiental, e também uma ampla reforma urbana, onde a locomoção das pessoas demande menos tempo, principalmente nas grandes cidades.
Por isso, Vânia reforça a importância de uma análise do ponto de vista da classe trabalhadora sobre os impactos da mecanização no campo, que, apesar de aumentar a produtividade, contribui para o desemprego estrutural e a substituição gradual dos trabalhadores do campo. “A mecanização altera a dinâmica de produção, interfere na mão de obra, modifica as relações campo-cidade e contribui para o desemprego estrutural”, afirma ela.
Isso porque “A narrativa do campo brasileiro não é única; há a disputa entre a agricultura familiar, que vê o campo como um espaço de vida, e o agronegócio, que o considera apenas um lugar de negócios”, argumenta. Um ponto importante destacado pela sindicalista trata-se de um intenso combate ao trabalho escravo e valorização do trabalho no campo.
Bela enfatiza a necessidade de criação de políticas públicas que possibilitem o barateamento dos alimentos orgânicos e restrinjam o consumo de ultraprocessados, que tanto mal fazem à saúde. Para ela, é fundamental “comida boa nas escolas, nos hospitais, nos presídios, restaurantes populares espalhados pelo país; limites a propaganda e consumo de alimentos ultraprocessados; incentivo ao ato de cozinhar dentro de casa através da redução da jornada de trabalho e da remuneração do trabalho doméstico”, entre outros itens fundamentais para que a alimentação possa ser prazerosa e benéfica à saúde.
O curta-metragem Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, mostra muito bem a questão da fome e as prioridades do capital e do agronegócio.
Além disso, um amplo trabalho de educação sobre a divisão do trabalho doméstico, dando responsabilidade também aos homens no ato de cuidar. Vânia concorda com ela e afirma que “o Brasil precisa da reforma agrária com todos os requisitos necessários para alavancar a produção de alimentos como forma eficaz de combate à fome”, mas isso, “precisa ser feito com trabalho decente e respeito às leis e às trabalhadoras e aos trabalhadores do campo”.
Para ela, “a questão da emancipação feminina, do trabalho doméstico e da alimentação saudável está intrinsecamente ligada aos direitos humanos e à luta por uma sociedade igualitária com valorização do trabalho e respeito à vida”.
Serviço:
Quem Vai Fazer Essa Comida?
Bela Gil
Editora Elefante
Preço: R$ 60
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