PUBLICADO EM 15 de ago de 2020
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O papel da polícia é prender, torturar e matar pobre? Entrevista com André Tredinnick

 

Por Marcos Aurélio Ruy

Depois do Supremo Tribunal Federal (STF) proibir as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro, um levantamento feito pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) mostra queda substancial de homicídios cometidos por policiais no estado. Foram 34 crimes em junho contra 129 em maio. Uma diminuição de 73,6%. Ao mesmo tempo os índices de criminalidade também caíram.

Já em São Paulo, onde as operações policiais estão mantidas, um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que a letalidade policial cresceu 31% no período entre janeiro e abril, mês que bateu recorde de mortes pela polícia (119, contra 78 em 2019) durante a quarentena.

Foto: Rovena Rosa

“Isso mostra que a intervenção da Suprema Corte foi fundamental. Em abril e maio já vivíamos o isolamento social, mas o padrão de mortes por agentes do Estado continuava alto. Para nós, a queda ocorreu devido à liminar do STF”, explica ao G1, Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Segurança do Rio de Janeiro.

Uma conversa com o juiz de Direito, André Tredinnick, titular da 1ª Vara de Família da Leopoldina Regional da Capital (Rio de Janeiro) e participante da Associação Juízes para a Democracia, sobre a violência policial e que tipo de política de segurança pública deve ser adotada no país.

Tredinnick informa que o embrião da Polícia Militar vem desde o período colonial, quando Dom João VI, rei de Portugal, veio ao Brasil no século 19 e ganhou caráter mais contundente na Constituição de 1946, quando as Guardas Municipais passaram a ser chamadas de Polícia Militar para a “prevenção da ordem pública” com policiamento ostensivo.

Já a Constituição de 1988 ampliou o policiamento ostensivo, subordinando as polícias nos estados aos governadores. Além de mantê-las como forças auxiliares e de reserva do Exército.

De acordo com Tredinnick, para a classe média “o inimigo é o excluído”.

Confira a entrevista completa abaixo:

Uma pesquisa do ISP mostra uma queda superior a 73% na letalidade policial no Rio de Janeiro após o STF proibir as operações policias nas favelas. A violência policial é a política de segurança pública do Estado brasileiro?

André Tredinnick: Desde os relatos mais antigos da polícia militar, como na descrição que o escritor Aluísio de Azevedo (1857-1913) faz de uma incursão dos “morcegos” em um cortiço (no livro “O Mulato”) a Polícia Militar historicamente promove a violência na repressão das classes despossuídas e periféricas.

A letalidade bilateral (mortes de moradores e policiais) indica uma política de segurança pública de genocídio dos miseráveis, que são descartáveis na lógica do sistema econômico vigente. Como força repressiva sua única função nas favelas é promover o terror e o extermínio, culpabilizando vastas camadas da população pela exclusão social a que são submetidas. É de se notar que na lógica da favela sob ocupação militar sazonal há suspensão total dos direitos fundamentais, com revistas arbitrárias e vexatórias.

De acordo com essa pesquisa, a incidência de vários crimes também caiu no Rio de Janeiro, o que há de errado com as polícias miliares, não só do Rio, mas do país todo?

Se essa vastidão de crimes mal chega a ser objeto de apuração pelo sistema de Justiça, a redução da letalidade em poucos meses indica que o terror da polícia ainda possuía efeitos deletérios em todo o tecido social, não só nas populações marginalizadas. Dentre as várias linhas a serem pesquisadas está a óbvia de que, sem terror, a comunidade se organiza e o coletivo dá conta das dificuldades econômicas locais, mesmo sob a pandemia, podendo suportar conflitos, desemprego, exclusão econômica. A favela é viva e inteligente, encontra soluções criativas mesmo na exclusão social.

A polícia brasileira é um das mais violentas do mundo, que tipo de política de segurança pública é necessária para a polícia merecer a confiança das pessoas?

A polícia no Brasil atende anseios arraigados das classes abastadas e a classe que se imagina abastada, a classe média branca, profundamente racista, preconceituosa, acostumou-se a uma ordem perversa de pessoas negras em trabalhos que ela considera subalternos.

Políticas de inclusão social e distribuição de renda foram vistas com repulsa pelas camadas proprietárias. O discurso insustentável de que o terror nas comunidades excluídas vem nessa lógica: “não quero resolver a causa da miséria. Quero exterminar os miseráveis”. Aqui se produziu a figura do outro: o inimigo é o excluído.

Como mudar o caráter de apenas reprimir preto, pobre e favelado presente nas polícias no país?

A Polícia Militar é do tempo do Império. A lógica militaresca existe desde sempre. Seu modelo colonizado são as polícias europeias (França). Faz parte da razão de ser do Estado, corporificação do sistema econômico que precisa ser ladeado por um forte aparato repressivo. Não pode mudar. Sua essência é o controle.

Numa sociedade de controle há demanda de forças que exerçam essa operarão pela violência. É uma ilusão pensar numa polícia que promova a liberdade, a criatividade, o prazer. Os termos são autoexcludentes.

Experiências como a Confederação Democrática de Rojava (a Revolução de Rojava, em 2012, criou conselhos comunitários na chamada Primavera Árabe) indicam que a construção exclusivamente comunitária e a ocupação temporária e breve da função podem reduzir um pouco os abusos que surgirão na ocupação de uma função de controle. E a transparência, a filmagem das ações policiais, a humanização da polícia, devem andar pari passu com essas mudanças.

Qual o poder das milícias no estado do Rio de Janeiro?

É preciso investigar o quão distante ou próximo estão as milícias do aparato estatal. Os indicativos são preocupantes até agora.

Os governadores Wilson Witzel, do Rio e João Doria, de São Paulo assumiram seus mandatos dando carta branca para a polícia agir violentamente. Qual o perigo de insuflar a violência policial?

O discurso do extermínio veio se agravando nos últimos anos a ponto de campanhas políticas terem sagrado a morte como uma redenção coletiva. Foram todos eleitos. A sociedade é bombardeada o tempo todo com detalhes horripilantes de crimes pela televisão, com programas de televisão exclusivos para aberrações dessa natureza (proibidos em alguns países). A violência atingiu níveis intoleráveis. Como resultado disso, a empatia e a relação de afeto deixaram de existir.

Insuflam a violência policial, mas cortam verbas das áreas sociais. Onde isso pode dar?

A espiral da concentração de renda e o aumento da miséria não são discutidas por nenhum projeto político atual. Como disse Umberto Eco, o mundo repete o início do século 20 nos detalhes pavorosos que levaram à ascensão do nazifascismo.

Quais as consequências da intervenção militar decretada por Michel Temer no Rio?

São operações de amplificação do terror. Os relatos dessas populações são de mais abusos e violações dos direitos humanos. O inacreditável é que são operações milionárias e absolutamente inúteis para o fim declarado de “redução da criminalidade”. Trata-se do uso de forças militares contra a própria população civil em tempos de paz e que foi suspensa de forma surpreendente pelo STF.

Inacreditável chegarmos a esse ponto sem discutir a óbvia concentração de renda e exclusão social gigantesca que colocou essas pessoas em guetos e ainda as pune por estarem lá com o uso de forças militares.

O Estado gasta mais com um prisioneiro do que com um estudante, isso não aprofunda a miséria?

O custo de uma pessoa encarcerada, mais de R$ 2 mil num presídio estadual e R$ 5 mil nos presídios federais, não leva à discussão de que tais valores, se transferidos à população excluída, como num grande Plano Marshall (plano dos Estados Unidos para a reconstrução dos países aliados da Europa após a Segunda Guerra Mundial) para reduzir a miséria, seria mais lógico do que pagar para manter a pessoa no cárcere, engrossando as fileiras das organizações criminosas que controlam boa parte do sistema penitenciário brasileiro, perpetuando a espiral da violência, posto que cadeia não reduz violência.

A Lei 13.964/2019, chamada de “Lei Anticrime” favorece a violência policial?

Um mote, que se repete à exaustão na nossa sociedade, é que as leis existentes impedem o combate ao crime. E na sequência outra repetição é que as penas mais graves reduzem o crime. Tais máximas são dotadas de imensa desonestidade intelectual: sociedade de controle não produz menos violência. Mas seguimos com antolhos acreditando que mais alarmes, grades, câmeras, reconhecimento facial, banco de dados genético, mais terror da polícia, forças armadas contra a própria população civil, penas mais graves, julgamentos sumários e a importação de institutos dos Estados Unidos (delação premiada, assunção de culpa, etc) reduzirão a violência quando a violência é diretamente proporcional à exclusão social, ao racismo estrutural, pontos fundantes da nossa sociedade que seguem ignorados.

É outra violação aos direitos das pessoas mais pobres?

Só para se ter uma ideia, o pacote anticrime, nome como foi vendido à mídia, está no mundo das ideias simples, fáceis de entender num momento de ausência de reflexão, e inteiramente incompatível com o Estado de Direito. Se no momento de sua aprovação uma ou outra modificação aumentou as garantias individuais, como a figura do juiz da instrução, a matéria está suspensa por decisão do STF e pressão de entidades corporativas da magistratura.

O que essa visão carcerogênica produz? Haverá aumento brutal do encarceramento em massa, e por consequência aumento do poder das organizações criminosas que controlam boa parte do sistema penitenciário. A polícia aumentará a exposição dos seus agentes à morte, às lesões graves e danos psicológicos decorrentes da política do terror, causando mais letalidade nas populações excluídas. É preciso romper com a espiral que nos levará ao fim do pouco que resta do Estado de Direito.

Que tipo de segurança pública devemos defender após a pandemia?

Defendo a desmilitarização da polícia, sua reconstrução comunitária e temporária, numa formação humanística e a ocupação temporária da função com a clareza de que sem enfrentar a miséria e a exclusão social não sairemos dos índices elevados de violência que estamos imersos.

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