Por Paul Heideman (*)
Hubert Henry Harrison é o mais importante militante negro do qual você talvez nunca tenha ouvido falar. Enquanto outras figuras importantes do movimento negro, de W. E. B. Du Bois a Ella Baker e Malcolm X, são homenageadas, desde nomes de rua a selos postais, Harrison permanece nas sombras, em grande parte desconhecido, exceto por especialistas em história negra. Em seu tempo, no entanto, foi uma figura que estava ao lado de gigantes como Marcus Garvey, Ida B. Wells e A. Philip Randolph.
Foi também um dos primeiros socialistas negros nos EUA. E desenvolveu, no Partido Socialista, uma análise de como o capitalismo produz a desigualdade racial, e pressionou o movimento dos trabalhadores a lutar diretamente contra ela. Membro da ala esquerda do partido, Harrison foi expulso durante as lutas de facção antes da Primeira Grande Guerra. Criou então seu próprio jornal e liderou o movimento negro no Harlem após a guerra.
Ao longo de sua breve vida, Harrison insistiu em ligar a luta contra a opressão racial à luta contra o capitalismo. O trabalho de sua vida inspira hoje aqueles que tentam se juntar a essas duas lutas.
Harrison nasceu em Saint Croix, uma pequena ilha do Caribe, em 1883. Aos sete anos de idade, trabalhava como empregado doméstico. Quando sua mãe morreu em 1898, ele imigrou para Nova York, onde terminou o ensino médio e conseguiu um emprego nos correios. Logo se tornou um líder intelectual, organizando grupos de discussão política entre seus colegas de trabalho e se lançando na cena de palestras e debates de rua em Nova York.
Um forte defensor da igualdade racial, Harrison logo entrou em conflito com a figura política negra mais importante de sua geração, o acomodacionista Booker T. Washington. Harrison escreveu uma carta ao jornal New York Sun criticando a afirmação de Washington de que “os estados do Sul oferecem aos negros chances melhores do que quase qualquer outro país do mundo”. Harrison criticou Washington por seu silêncio sobre os ultrajes do racismo e o acusou de manter sua posição como líder da raça “pela graça dos brancos que escolhem os líderes das pessoas de cor”.
Washington nunca se dignou a responder através da imprensa; em vez disso respondeu usando sua posição como distribuidor de empregos para negros, mandou demitirem Harrison dos correios.
Mas o plano de Washington fracassou – menos de um mês depois de perder seu emprego, Harrison foi contratado como palestrante e organizador do Partido Socialista, que era uma grande organização, particularmente em Nova York, ao qual Harrison se filiou em 1911. Em todo o país, os socialistas ganhavam eleições para câmara municipais e assembleias estaduais; em Wisconsin, o líder socialista Victor Berger conseguiu uma vaga na Câmara Federal. Mas o partido não ia bem entre os trabalhadores negros apesar do forte debate, desde sua fundação, sobre a “questão racial”.
A tarefa de Harrison foi mudar isso. Tendo sido contratado como organizador durante a campanha municipal de 1911, a missão do jovem intelectual era aumentar o apoio ao partido entre os eleitores negros. Ele se mostrou extremamente eficaz, sendo pioneiro no uso de materiais de campanha socialistas dirigidos aos negros. O resultado foi bom; o partido teve seis mil votos a mais desde a última eleição, impulsionado em parte pelo aumento do apoio entre os eleitores negros. O partido, claramente impressionado com a perspicácia de Harrison, o contratou como palestrante e organizador em tempo integral “com o propósito de estabelecer um núcleo de uma organização entre as pessoas de cor”.
Harrison logo começou a trabalhar, ajudando a montar um “Colored Socialist Club” (Clube Socialista de Pessoas de Cor) em Nova York e escrevendo uma série de artigos sobre “O Negro e o Socialismo” em “New York Call”. A série de cinco partes apresentava uma análise da opressão racial nos EUA que era mais sofisticada do que qualquer coisa até então produzida pelos socialistas locais. Era uma compreensão materialista do racismo, sustentando que não resultava nem do preconceito racial “natural”, nem das más ideias dos brancos, mas da “falácia do medo econômico”, através da qual “a concorrência econômica cria preconceito racial.” Era do interesse dos capitalistas, escreveu ,”preservar o status econômico inferior da raça de cor, porque eles sempre podem usá-la na concorrência contra os outros trabalhadores”.
E era do interesse do Partido Socialista (SP) lutar contra essas idéias racistas. O partido, Harrison argumentou, teve que assumir a causa de “toda da humanidade oprimida” e rejeitar a política suicida de excluir os trabalhadores negros (como na época fizeram muitos sindicatos na American Federation of Labor – AFL; em português, Federação Americana do Trabalho). Para Harrison, socialistas e negros precisavam um do outro:
“Se a derrubada do atual sistema deveria elevar uma nova classe ao poder; uma classe à qual o negro pertence; uma classe que nada tem a ganhar com a degradação de qualquer parte de si mesma; essa classe removerá a razão econômica da degradação do negro. Essa é a promessa do socialismo, o movimento da classe trabalhadora. No triunfo final desse movimento está a única esperança de salvação desta segunda escravidão; de negros e brancos.”
Infelizmente, quando Harrison divulgava sua análise pioneira do racismo, havia no partido quem trabalhasse contra ele e suas ideias. A luta de facção entre as alas esquerda e direita chegava ao auge, em grande parte devido às atitudes em relação aos sindicalistas revolucionários do Industrial Workers of the World (IWW – Trabalhadores Industriais do Mundo), que abraçou o sindicalismo de luta de classes e desprezou tanto a cooperação com os patrões quanto o sindicalismo “puro e simples” da AFL. Crucialmente para Harrison, o IWW também organizou ativamente trabalhadores negros. Enquanto isso, a ala direita do partido priorizou a aliança com os sindicatos da AFL, temendo o IWW como revolucionário. Em 1912, a ala direita afastou do partido o líder da IWW, Big Bill Haywood, que também era membro do comitê executivo do SP; em consequência, muitos esquerdistas saíram com ele.
A ligação de Harrison com a esquerda do partido o colocou em uma posição precária em Nova York, desde que um dos principais adversários de Haywood, Morris Hillquit, passou a dirigir o SP. E começou a restringir o trabalho de Harrison, proibindo-o até como palestrante. Harrison, que nunca desistiu da luta, enviou uma nota curta para o comitê executivo dizendo que, se minha cor tiver algo a ver com isso, eu deveria agradecer-lhes por me avisar.
Harrison foi acusado de desrespeito ao comitê executivo e teve sua filiação suspensa por três meses. Quando a punição foi suspensa, Harrison havia deixado o Partido Socialista, e se tornado um militante independente, abrindo seu próprio caminho na esquerda de Nova Iorque. Deu palestras sobre temas que iam do ateísmo ao controle da natalidade, e se tornou um dos oradores de rua mais respeitados da cidade.
Quando a Primeira Grande Guerra estourou, Harrison viu uma nova oportunidade para o avanço negro. Ao se opor à guerra, repetiu argumentos de W. E. B. Du Bois e Vladimir Lênin, que encaravam o conflito como uma disputa entre as potências europeias para dominar o mundo. Ele esperava que, ao final, lavada por seu batismo de sangue, a raça branca seria menos capaz de se impor às outras raças. Enquanto os imperialistas lutavam entre si, os colonizados deviam se erguer. A Rebelião da Páscoa de 1916 na Irlanda foi o exemplo do tipo de ação que Harrison esperava ver espalhada pelo mundo colonial. “O povo negro dos EUA nunca chegaria a nada politicamente até que achasse conveniente imitar os irlandeses da Grã-Bretanha”, escreveu.
Harrison tomou a iniciativa de começar essa imitação. Na véspera de Natal de 1916, fez uma palestra intitulada “Quando o negro desperta: uma palestra sobre o movimento de homens entre os negros dos EUA”, que analisou e catalisou uma nova militância negra. Na esteira do sucesso da palestra, Harrison fundou a Liberty League (Liga da Liberdade), uma organização dedicada à luta negra contra a supremacia branca, e o primeiro grupo identificado com o nascente “New Negro Movement” (Novo Movimento Negro). Obteve fundos para criar um jornal, o Voice, editado por ele, que enfocou, em particular, a autodefesa armada contra os linchamentos de negros que se espalhavam à medida em que a economia de guerra atraía trabalhadores afro-americanos para fora do Sul rural.
A Voice decolou rapidamente, freqüentemente alcançando a circulação de dez mil exemplares por edição. Também chamou a atenção dos concorrentes políticos de Harrison. Fred Moore, um dos apoiadores de Booker T. Washington, rejeitou a Voice alegando que “os negros não aprovam explosões socialistas radicais, como apelar para se defenderem contra os brancos”.
Como no caso do Partido Socialista, entretanto, elementos mais conservadores trabalharam para minar a atividade política de Harrison. Seus concorrentes pressionaram os impressores, interferindo na capacidade do jornal de sair em tempo hábil. Harrison também se recusou, por motivos de orgulho racial, a receber dinheiro publicitário da grande indústria de alisadores de cabelo e branqueadores de pele que davam financiamento crucial para outros jornais negros. Seu comportamento pessoal também não ajudou – sempre desinteressado em questões financeiras, Harrison lidou mal com o dinheiro. Em novembro de 1917, a Voice fechou, apenas cinco meses depois de seu aparecimento.
Harrison também logo enfrentou uma concorrência formidável pela liderança dos cidadãos negros politicamente inquietos do Harlem. Marcus Garvey, um impressor nascido na Jamaica, veio para os EUA em 1916 e começou a construir sua organização nacionalista negra, a United Negro Improvement Association (UNIA;em tradução livre, União dos Negros para a Melhoria). Recrutando muitos dos primeiros apoiadores de Harrison, a UNIA se transformou em uma organização de massa, e chegou rapidamente a dezenas de milhares de filiados. Em 1920, o próprio Harrison aceitou um emprego como editor do jornal de Garvey, “The Black World” (O Mundo Negro).
Harrison morreu de uma operação de apendicite em 1927 com a idade de quarenta e quatro. Sua morte não foi amplamente notada, apesar de sua proeminência apenas uma década antes. Nos anos que se seguiram a 1920, ele continuou a contribuir para a cultura política militante de Nova York, mas nunca com a influência que teve como membro do Partido Socialista ou como líder do Novo Movimento Negro.
Quase um século depois, os contemporâneos de Harrison, como Garvey e A. Philip ‘, continuam mais conhecidos que ele, embora Harrison estivesse muito mais estabelecido na política de esquerda do Harlem muito antes de qualquer um deles. A obscuridade de Harrison – heroicamente combatida nos últimos anos pelo estudioso Jeffrey Perry – é parcialmente uma função de sua falta de sucesso na construção institucional. Enquanto o jornal de Randolph, o Messenger, publicado há uma década, e a UNI de Garvey, colocaram sua marca em uma geração de política negra, os esforços de Harrison não tiveram fôlego. . Como resultado, sua considerável influência e originalidade não receberam o devido reconhecimento.
No entanto, sua contribuição continua vital. Particularmente no Partido Socialista, Harrison articulou uma visão clara do papel do racismo na divisão do movimento dos trabalhadores e na necessidade de os socialistas atacarem a opressão racial onde quer que ela ocorresse. E enquanto Harrison se desiludiu com o SP, particularmente seu conservadorismo em torno de questões de raça e trabalho, ele nunca abandonou sua crença de que somente o socialismo traria libertação aos americanos negros.
Hoje, o trabalho de Harrison permanece inacabado. Realizar os ideais de igualdade e democracia que o guiavam ainda requer, em suas palavras, “uma revolução. . . surpreendente até pensar nela”.
(*) Paul Heideman é PhD em estudos americanos pela Rutgers University-Newark.
Fonte: Jacobin; tradução: José Carlos Ruy