PUBLICADO EM 10 de mar de 2020
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O feminismo afirma representar todas as mulheres. Então, porque ignora tantas delas? Por Mikki Kendall

Para um movimento que é destinado a representar todas as mulheres, o feminismo frequentemente foca naquelas que já têm a maioria de suas necessidades atendidas. Com muita frequência, não é sobre sobrevivência, mas sobre privilégios crescentes.

Meu primeiro casamento terminou em divórcio. Depois disso eu vivia de cupons alimentos, um cartão médico financiado pelo Estado e residências públicas. Hoje eu tenho uma educação avançada, uma família maravilhosa e uma carreira que eu gosto. Se essas eram as usuais histórias emocionantes e de bem estar sobre mães solteiras e pobreza, você pode sair pensando: “Bem, se ela pode fazer isso, porque todo mundo não pode?” E você pode esperar que eu diga, “Foi difícil, mas eu aprendi tanto, e eu lembro daquele tempo com carinho.”

O que eu lembro é a fome. E de ter medo de perder meu filho porque não podia sustenta-lo. É difícil tomar uma criança de uma mulher rica, mas é notavelmente fácil tomar de uma mulher pobre. Como sociedade, tratamos a pobreza como um crime, como se as mulheres passando por isso tivessem feito más escolhas para elas e seus filhos de propósito.

Eu estou falando sobre questões feministas, embora você possa não as reconhecer como tal. Enquanto feministas ouvimos sobre avanços de carreira, namoros, corpo, cabelo e sobrenomes, mas raramente o feminismo convencional centra a conversação em questões que preocupam a maioria das mulheres deste País [EUA]. Elas podem pagar sua comida? Elas têm acesso a cuidados de saúde? Elas estão seguras em suas casas? Elas têm casas? Elas podem atender todas as suas necessidades básicas?

A resposta esmagadora para esta última pergunta é “não”. Para um movimento que é destinado a representar todas as mulheres, o feminismo frequentemente foca naquelas que já têm a maioria de suas necessidades atendidas. Com muita frequência, não é sobre sobrevivência, mas sobre privilégios crescentes.

De acordo com um relatório de 2017, da Organização Alimentar e Agrícola das Nações Unidas, as mulheres são mais prováveis de terem insegurança alimentar do que os homens, em todas as regiões do mundo. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos reporta que em 2018 famílias com crianças chefiadas por uma única mulher foram os grupos mais suscetíveis a viverem em uma situação muito abaixo da segurança alimentar – mais que o dobro da média nacional. A crise da habitação a preços acessíveis impacta desproporcionalmente as mulheres, também. Mulheres ganham menos do que os homens, fazendo trabalhos similares, o que significa que famílias sustentadas por mulheres estão pagando proporções acima da média da renda em relação ao aluguel. Através de uma vida, isso significa muito menos renda disponível e maiores dificuldades de conquistar segurança financeira e independência. Isso é especialmente claro quando você olha para pessoas em relacionamentos abusivos.

Aliviar a pobreza das mulheres é uma questão feminista crítica. O feminismo tradicional pouco disse sobre os mais recentes planos de cortar o Programa Suplementar de Assistência Nutricional (SNAP), muito menos da longa história de cortar orçamentos nas costas das mulheres pobres. Maneiras de combater falta de moradia nunca parece crescer para o topo da agenda também. Claro, você pode achar uma mão cheia de artigos, talvez uma ou duas ativistas que trazem isso como uma questão feminista. Mas não há campanhas chamativas, nem programas com slogans apoiados por nomes famosos. Ao invés de agir como um movimento coletivo para melhorar as condições para todas, o feminismo convencional tem largamente tratado fome e habitação como problemas para outra pessoa resolver.

O mesmo pode ser dito sobre a violência, outra questão feminista que é raramente discutida como tal. A presença de uma arma em uma situação de violência doméstica aumenta em cinco vezes o risco de uma mulher se assassinada. As mulheres são assassinadas por essas armas porque elas estão disponíveis, porque seus parceiros são violentos, porque um acidente com uma arma é mais provável de ser fatal, por causa de uma dúzia de razões tornadas piores pela disponibilidade armas. Eu acredito que a única razão que eu escapei de ferimentos ainda piores – ou até morte – em um relacionamento é porque meu ex não tinha uma arma. Pesquisas também sugerem que enquanto a taxa para garotos é um pouco maior, estudantes, tanto homens ou mulheres, que foram expostos a violência de armas são mais prováveis de abandonar o ensino médio do que seus pares. E, é claro, mães enterram seus filhos por causa da violência e do porte de armas.

Se as feministas se importam tanto com a igualdade de gênero como elas dizem, encerrar o ciclo de pobreza e melhorar a qualidade de vida para todas as mulheres deve ser um foco primário. Afinal de contas, para mulheres que estão lutando para ter uma habitação, alimentação e estarem vestidas, essa não é uma questão de trabalhar duro o suficiente. Elas estão se inclinando, mas não na busca por pagamento igual ou “ter tudo”; sua busca por pagamento igual começa com igual acesso à educação e à oportunidades.

Não é que poder não é importante. Alguém com poder pode mudar as vidas de milhões com o golpe de uma caneta. Mas não faz diferença se a pessoa no comando dessa experiência que nós chamamos América – ou em qualquer papel de liderança influente – é uma mulher, se essa mulher replica as mesmas estruturas opressivas que priva de direitos a maioria das mulheres. Uma perspectiva feminista que existe sem acertar as contas com o impacto da raça, gênero, sexualidade ou habilidade jorra todas as palavras certas, mas não faz muito pelas condições que enfrentam as mulheres sem o poder de escrever políticas ou efetuar ampla mudança. Substituir narrativas sobre sair de uma situação usando os recursos existentes e individualismo áspero com ideologia ostensivamente feminista apenas funciona se o feminismo não conta com acumular poder e privilégios para os poucos escolhidos, enquanto continuando a apoiar-se na ideia de que algumas mulheres podem se dar ao luxo de esperar indefinidamente por segurança e apoio.

Muito frequentemente, as poucas mulheres que chegam ao topo da multidão patriarcal usaram o feminismo para chegar onde estão, mas ainda não parecem conscientes de que a força política associada com o feminismo pode ser usada para mais questões do que aquelas que importam para elas. Elas escolheram pegar um lugar à mesa ao invés de tentar construir novas mesas. Feminismo tem que servir aos interesses de todas aquelas com que ele conta para sustenta-lo, ou arrisca se tornar um movimento sem propósito para a maioria, e uma arma definitiva contra aquelas que afirma representar.

Do livro “Hood Feminism”, por Mikki Kendall, publicado em 25 de fevereiro de 2020 por Viking, uma marca de Penguin Publishing Group, uma divisão de Penguin Random House LLC. Copyright 2020 por Mikki Kendall

Mikki Kandall é escritora e ativista, autora de “Hood Feminism: Notes from the Women a Movement Forgot” (Feminismo de capuz: notas das mulheres que o movimento esqueceu) e “Amazons, Abolitionists, and Activists: A Graphic History of Women’s Fight for Their Rights” (Amazonas, abolicionistas e ativistas: uma história gráfica da luta das mulheres por seus direitos)

Fonte: time.com

Tradução Luciana Cristina Ruy

ENVIE SEUS COMENTÁRIOS

  • Roberta

    Bizarramente precisa em cada palavra!!
    Você por acaso sabe quando o livro será publicado no Brasil?

  • zap noticias

    Gostei de mais do se artigo :), Obrigado por postar, inclusive acompanharei mais esse site

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