Por Marcos Aurélio Ruy
O filme Argentina, 1985 (2022), de Santiago Mitre, em cartaz na plataforma Amazon Prime Video, retrata o histórico julgamento das juntas militares que governaram o país com mão de ferro após o golpe de estado de 1976 até 1983, quando as lutas populares trouxeram de volta a democracia ao país vizinho.
As investigações feitas pelo Ministério Público argentino trouxeram à tona, para todo aquele país, o terror implantado pela ditadura fascista. E com isso, vêm à mente todas as ditaduras (o Brasil no meio), ocorridas na América Latina, nas décadas de 1960-1970.
Sem nenhuma exceção, foram cometidos, em toda essa parte do continente, muitos crimes contra a humanidade com prisões, torturas, estupros e assassinatos. Somente na Argentina, contam-se mais de 30 mil desaparecidos.
No filme Argentina, atuam os atores Ricardo Darín, interpretando o promotor Julio César Strassera, responsável pelo Ministério Público de levar ao tribunal os principais comandantes da ditadura militar vigente no país vizinho, e Juan Pedro Lanzani no papel do promotor adjunto Luis Moreno Ocampo.
A dupla formou uma equipe composta por jovens com a incumbência de comover a sociedade com as atrocidades comandadas pelas duas juntas governativas do período, quando os militares destroçaram a Constituição, os direitos humanos e a própria soberania da Argentina.
Além de retratar um fato histórico de fundamental importância para o futuro de seu país, a obra pode atingir uma juventude que desconhece a época de predomínio de ditaduras fascistas em praticamente toda a América Latina.
Strassera e sua equipe apresentaram 709 casos ao tribunal. Cada um mais hediondo que o outro e, com isso, conseguiram condenar boa parte dos principais comandantes da ditadura, o general Jorge Videla e o almirante Emilio Massera, à prisão perpétua; o general Roberto Viola a dezessete anos de prisão; o almirante Armando Lambruschini a oito anos; e o general da aeronáutica Orlando Agosti a quatro anos e meio. Os outros integrantes foram absolvidos.
Para o promotor, “este processo significou para quem teve o privilégio doloroso de vivenciá-lo profundamente, uma espécie de descida às zonas mais tenebrosas da alma humana nas quais o sofrimento, a degradação e o terror atingem profundidades difíceis de imaginar antes e de compreender depois”.
Mesmo assim, foi um fato inédito, por esta região, a condenação de dirigentes de uma ditadura sanguinária. Coisa que o Brasil fez muito pouco ou quase nada. E, talvez por isso, o passado assombre o presente e o futuro do país o tempo todo.
Quase nunca no Brasil houve um processo de ruptura com punição aos responsáveis por desmandos do passado. Assim ocorreu na Independência, que não aboliu a escravidão; na Abolição, que não reparou os escravizados por anos a fio, aliás os deixou sem dinheiro, sem terra e sem trabalho; e na proclamação da República, que conciliou com os latifundiários escravocratas e antidemocráticos.
O escolhido pela Argentina para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, apesar de não apresentar grande novidade estética, tem o grande mérito de fomentar o debate sobre os crimes contra a humanidade cometidos pelos ditadores argentinos – como os de todos os seus vizinhos (mais uma vez o Brasil dentre eles) – e mostrar a necessidade de se estudar a história do ponto de vista da classe trabalhadora, que liderou centenas de revoltas contra o sistema desde a escravidão aos dias atuais.
E isso sobretudo nestes tempos onde renasce uma extrema-direita tosca e violenta com a adesão de setores sociais (chamados de “pobres de direita”, pelo humorista Bemvindo Sequeira já caiu na boca do povo) que, como disse Chico Buarque num comício da campanha presidencial de Fernando Haddad, em 2018, no Rio de Janeiro, votam contra si mesmos, sem perceber que retroalimentam o sistema, tentando ser contrários a ele.
É um sistema – capitalismo – que concentra 2/3 de toda a riqueza produzida no planeta nas mãos de 1% da população e impede as pessoas de vislumbrarem novos caminhos para suas vidas, enquanto mais da metade do povo não sabe se terá almoço e jantar no mesmo dia.
Para acabar com as desigualdades, que no Brasil levam mais de 33 milhões de pessoas à fome, e mais de metade da população à insegurança alimentar, é preciso investir muito dinheiro em educação, com um conceito amplo envolvendo toda a sociedade rumo a uma vida digna.
Ao assistir Argentina, 1985, no ano de 2023, com tudo o que aconteceu no Brasil durante os últimos quatro anos – e ainda mais após a vitória do presidente Lula em outubro passado –, vem forte à mente o discurso final de Strassera, no qual concluiu: “Senhores juízes, nunca mais”.
Nunca mais a prisão política, a tortura, o assassinato. Mas por que isso ainda acontece? Porque o capitalismo vive da guerra, da opressão, da perseguição. Essencialmente da exploração das pessoas que vendem a sua força de trabalho e não vivem, apenas sobrevivem.
Nunca mais estupros, no Brasil ou na Espanha; nunca mais armas; nunca mais invasão de terras indígenas; nunca mais genocídio da juventude pobre, preta e periférica; nunca mais assassinatos de sindicalistas e ambientalistas; nunca mais nenhum tipo de assédio; nunca mais tanta gente morando na rua; nunca mais uma mídia vil que só enxerga os seus interesses mesquinhos; nunca mais golpes contra a democracia; nunca mais ódio e violência.
E para pôr fim a isso tudo somente com a construção do mundo novo, onde a prevaleçam a solidariedade de classe e a generosidade. Assistir a essa obra pode ajudar.