Por José Carlos Ruy
A profunda crise do brexit afetou os principais partidos ingleses. Os tories (conservadores) estão rachados. É a “maior crise de sua história”, diz o escritor marxista irlandês Richard Seymour em entrevista à revista eletrônica Jacobin (“Only Jeremy Corbyn Can Stop Farage” – em tradução livre: “Só Jeremy Corbyn pode parar Farage”), na qual esta apresentação de Nigel Farage se baseia.
A crise também atinge os trabalhistas, embora não em escala tão acentuada. A derrota dos partidos dominantes do cenário britânico na última eleição européia (em 21 de maio de 2019) aprofundou a crise, fazendo crescer a ameaça representada pela extrema direita de Nigel Farage e seu Partido do Brexit – que saiu na frente naquela eleição, com 31% dos votos, seguido pelos os liberais democratas, com 20%, e à frente dos trabalhistas, que tiveram 14%, e dos tories (conservadores), com 9%.
O discurso do brexit seduz muitos ingleses. Entre os consevadores (tories), é apoiado por uma ala minoritária, mais à direita, em cuja base está boa parte da pequena burguesia e uma parte do capital financeiro em Londres, que não aceitam o projeto europeu, rejeitam a legislação trabalhista que o acompanha, e são islamofóbicos, avessos aos imigrantes.
Nesta crise, sobretudo dos conservadores, a extrema direita ganha espaço e pode avançar.
Seu líder, Nigel Farage diz Seymour, é um “homem incrivelmente afiado e perigoso”. Filho de um corretor da bolsa que deixou a família quando era criança, Nigel fez carreira como comerciante de commodities e especulador na Bolsa de Londres, e ficou muito rico com isso.
Já na escola secundária era conhecido como fascista; um antigo colega lembra dele cantando canções ofensivas aos judeus. Também tinha orgulho de ter como iniciais as letras, “NF”, as mesmas da Frente Nacional, o partido fascista, lembra esse antigo colega.
Ficou preocupado quando, nos anos 90, pensou que o neoliberalismo implantado por Margareth Thatcher poderia ser ameaçado pela União Européia. Ligado desde a adolescência, em 1978 (ele nasceu em 1964), ao Partido Conservador, em 1993 passou para o então pequeno, conservador e eurocético Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), onde ficou até 2018, pulando em seguida para o Partido do Brexit, em fevereiro de 2019, do qual logo se tornou o principal dirigente.
Bom orador, intriguento e oportunista, antes – nos anos 90 – foi palestrante e candidato ao parlamento pelo UKIP, mas não conseguiu se eleger. Naqueles anos Nigel Farage, um exímio propagandista das idéias da direita, alcançou uma posição de liderança no UKIP, contra cujos antigos dirigentes apoiou-se em militantes do Partido Nacional Britânico (BNP), de ideologia fascista – embora mais tarde tenha tentado negar essa parceria.
Tornou-se o líder de maior sucesso do UKIP, com grande cobertura na mídia. E se aproveitando de todos os espaços abertos pelos partidos dominantes, radicalizando-os à direita.
A saída da Grã-Bretanha da União Européia, o brexit, tem sido sua principal bandeira, não importando o custo que esta decisão possa ter para os trabalhadores (poderá provocar aumento do desemprego) e para o país (que poderá empobrecer ainda mais e perder prestígio).
Foi com essa bandeira que venceu nas eleições europeias de 2014, alcançou quatro milhões de votos nas eleições gerais de 2015, teve papel importante para conseguir que os tories aprovassem o referendo sobre saída da União Européia de junho de 2016, e lutou pela vitória do brexit.
Mas, na eleição de 2015 o UKIP não conseguiu eleger nenhum parlamentar, e Nigel Farage acirrou a disputa interna no partido, acabando sendo expulso.
Inspirado no igualmente direitista italiano Movimento das Cinco Estrelas, onde os líderes têm frágil compromisso com a estrutura partidária, Nigel fundou, diz Seymour, um partido com cara de empresa privada no qual ele é o CEO (sigla para Chief Executive Officer o dirigente principal de uma empresa), que “só pode ser removido por um conselho de diretores nomeados por ele”.
Angariou doações de “apoiadores registrados” e modelou o partido como uma plataforma digital baseada na ação de ativistas on-line, “na forma de compartilhamento de conteúdo e outras formas de ‘clicktivismo’”. Este é o Partido do Brexit. Que não tem nenhuma base clara e visível, fora do espaço eletrônico, cujo apoio é “impulsionado por surtos de sentimento e atenção on-line e pela conexão pessoal de Farage com uma base de fãs”. Não tem um programa político claramente definido, a não ser apenas uma questão: o brexit, sair da União Européia.
Não fala abertamente sobre seus objetivos – privatizar a saúde pública, revogar os direitos trabalhistas, acabar com as leis de igualdade salarial de homens e mulheres, acabar com o salário mínimo e assim por diante – estas ideias não são populares. “É por isso que ele não falou sobre nada disso em seus discursos de campanha; ao contrário, abordou o sentimento de indignação pública e o sentimento de ser maltratado pelo establishment político”, registra Seymour. Como o direitista Jair Bolsonaro, na campanha eleitoral brasileira de 2018, na qual fugiu dos debates para não explicitar claramente suas idéias contra o povo e os trabalhadores.
O capitalismo contemporâneo não tem espaço para a democracia nem para o protagonismo popular, recuando em relação à república democrático-burguesa que se firmou desde o final da Segunda Grande Guerra (1945) e o início da hegemonia neoliberal, no final da década de 1970 que foi, pode-se concluir, um período de exceção, ante a ameaça representada pela existência da União Soviética e do campo socialista como possível alternativa ao capitalismo.
Depois de Margaret Thatcher (Inglaterra, 1979) e Ronald Reagan ( EUA, 1981), antecedidos por Augusto Pinochet (Chile, 1973), o capitalismo – como sistema político – procura voltar a seu leito principal, não democrático, autoritário, no qual a hierarquia de classes se impõe e dá,à palavra “liberal” o significado de “liberdade para a ação do capital”.
A tendência indicada pela ação de Nigel Farage, Donald Trump, Jair Bolsonaro e seus congêneres da direita no mundo, teve seu sentido apontado muitos anos antes, pelo italiano Antônio Gramsci – o de trazer para a esfera política pública a mesma hierarquia autoritária que existe no chão de fábrica: o mando irrestrito e inquestionável dos patrões. Este é o sentido da organização partidária (um estado em embrião, ensina Gramsci) encarada como uma empresa comandada por um CEO.
Guardando alguns traços típicos do fascismo tradicional – o domínio irrestrito do grande capital financeiro e o ataque aos direitos democráticos e sociais do povo e dos trabalhadores -, com apoio da ditadura da mídia patronal, a visão autoritária mobiliza, em nosso tempo, setores das classes dominantes e das camadas médias, e mesmo populares, no ambiente de desmoralização da política como atividade de disputa pelo poder e pelo governo. A direita, em nosso tempo, atua para desmoralizar a política, os partidos, e desfazer a legislação social e trabalhista que tolhe a ganância do capital.
Nesse sentido, Seymou tem razão ao classificar Nigel Farage como o “reacionário mais perigoso da Grã-Bretanha”.
José Carlos Ruy é jornalista e escritor