Por Rostand Tiago
Em sua trajetória, a cineasta Maria Augusta Ramos (O Processo, Morro dos Prazeres, Futuro Junho), um dos principais nomes do documentário brasileiro contemporâneo, vem registrando conflitos e dilemas da sociedade brasileira que vão dos morros ao Palácio do Planalto. A partir de uma posição mais recuada, sua câmera deixa o presente tomar conta de suas narrativas entre registros e conversas que raramente se dirigem diretamente para a câmera. Agora, essa tomada do presente vai se articular com a construção de uma memória de um passado igualmente conflituoso em seu novo filme, Não Toque em Meu Companheiro, estreando nesta quarta-feira nas plataformas de streaming on demand.
Seu novo trabalho dá continuidade ao seu empenho de trazer retratos de um microcosmo, aqui a Caixa Econômica Federal, que acabam extraindo um quadro maior da política brasileira. Ela acompanha conversas entre funcionários do banco público que participaram de uma histórica greve em 1991, demitidos arbitrariamente em três estados diferentes, em reflexo das políticas neoliberais do governo Collor. A movimentação contou com uma rede de solidariedade formada por parte significativa dos trabalhadores do instituto, que contribuíram aos milhares para a sobrevivência dos grevistas e sua luta pela reintegração. Uma história que Maria Augusta não conhecia, mas ao descobri-la por meio de um convite da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), decidiu contá-la.
“Desde quando dirigi Futuro Junho (2014), eu já tinha esse interesse muito grande em retratar como esse modelo econômico neoliberal influencia nas relações humanas e sociais, promovendo uma mentalidade individualista e fragilizando relações de trabalho e movimentos coletivos. É uma mentalidade que vai propagar ideias de ser empreendedor de si mesmo e da uberização do trabalho que vamos vendo ser uma grande falácia”, relata a diretora. O contato com a história dos grevistas e o convite da Fenae acabou se conciliando com esse desejo de investigar os braços do neoliberalismo, aqui retratado pelos ideais de enxugar o estado e no ataque ao funcionalismo público. Augusta reitera que a realização deste trabalho à convite foi guiada por muita liberdade, com um grande respeito por sua visão autoral.
Não Toque em Meu Companheiro se estrutura a partir de uma relação dialética entre o passado e o presente em diversas observações. Algumas mostram os ecos daquela rede de solidariedade na organização trabalhista de hoje, outras partem mais da ciclicidade da história, em especial ao estabelecer paralelos entre as figuras e os governos de Collor e Bolsonaro. Há também espaço para conflitos geracionais entre servidores da instituição de diversas épocas, assim como o reconhecimento da luta passada.
“É a primeira vez que desenvolvo um filme que conta essa história do passado. Meu trabalho de uma certa maneira vêm sendo muito ligado ao instante e as vidas das pessoas no cotidiano. Mas é uma história do passado que evoca o presente a partir do reencontro dos funcionários e com as perspectivas de cada um. Então o presente ainda é muito importante”, explica Maria Augusta, que dá conta dessa abordagem a partir de sua grande destreza em registrar diálogos a articulá-los narrativamente .
A partir daí, ela deixa claro que sua intenção é propor olhares para todo um sistema econômico por meio da exposição das especificidades de uma instituição financeira pública e centenária. Nesse ethos, o conflito mercado/estado, entre suas virtudes e defeitos, ganham corpo a partir das análises que pipocam, fazendo surgir uma crítica ao ensejo privatizador e de redução de direitos trabalhistas. “Fazemos um movimento de desmistificar falácias sobre o funcionalismo público e muita coisa que não é verdade sobre o papel dos bancos públicos, de entender também do porquê não privatizar. Está tudo lá, nas falas dos personagens antigos e jovens. Se alguém conseguir me dizer por que privatizar uma instituição que dá lucro ao estado e tem função social fundamental, talvez eu mude de opinião”, declara.
O documentário foi finalizado em fevereiro e pouco tempo depois, a Caixa voltaria a protagonizar o noticiário nacional com a questão do auxílio emergencial e sua retirada. A realidade atual acaba evidenciando muitos aspectos e estigmas da instituição e o papel exaustivo que os trabalhadores precisam exercer quando o nó aperta. “A pandemia evidenciou a função estratégica da Caixa e vemos a mesma importância que teve com o pânico quando Collor confiscou a poupança. Os funcionários demitidos do filme relatam as horas que precisaram trabalhar e todo o estresse. O filme já estava pronto antes disso, mas acabou se tornando mais atual e urgente”, conclui.
Novas articulações, velha câmera
O cinema de Maria Augusta vem sendo conduzido por significativas inserções em cotidianos de diferentes acessibilidades. Sua câmera entra em espaços e instituições de diferentes níveis de acessibilidade, entre tribunais, posto policiais, lares e as instituições do poder federal em Brasília. Agora, em seu novo filme, as conversa, principal motor narrativo da obra estão localizadas em cenários impessoais. Sua articulação não partirá da rotina presente, mas de um encontro marcado especificamente para se debater as questões investigadas pela produção. Trata-se de um desafio em conseguir manter um apelo a partir conflitos que são engatilhados pela memória e a conversa em um ambiente mais controlado e asséptico.
Maria Augusta é habilidosa em conseguir tirar esse cenário do imaginário da burocracia e do viés economicista desgarrado do social. A partir de um diálogo de uma classe média de diferentes gerações, ela extrai autênticos retratos de contradições brasileiras, organizações de luta política e um quadro macroeconômico do país, sem soar muito didático ou específico demais.
Há um certo equilíbrio rítmica entre o arquivo, a ilustração do mundo exterior – representada por tomadas de uma agência da Caixa flutuante no Amazonas ou de um feirão do Minha Casa, Minha Vida -, o debate do presente e as memórias do passado. Dessa forma, Maria Augusta faz o necessário para conseguir deslocar suas questões levantadas do espaço das reuniões e deixa claro a concretude daquelas falas dentro da materialidade do mundo.
Já enxertos com falas de especialistas, como a filósofa Marilena Chauí e o economista Luiz Gonzaga Belluzo, por mais que se liguem à discussão, acabam soando formalmente deslocados, funcionando mais como complementos ilustrativos do que um fator vital para o desenrolar narrativo. Mas a força da frontalidade e da honestidade como o filme opera, assim como a obra de Maria Augusta, deixando claro de onde parte e quais suas posições, se sobressai com facilidade, firmando a diretora como um dos principais nomes do gênero.
Fonte: Jornal do Commercio