“Essa é nossa segunda semana de quarentena coletiva em Roma. Primeiro foram as escolas e muita gente passou a trabalhar em casa, deixar as crianças com os avós não é uma opção. Fomos orientados a não sair e evitar lugares fechados e aglomerados.
Agora somos autorizados a sair apenas para trabalhar (os que ainda saem para trabalhar), fazer compras ou ir para o hospital. Nada mais. A natação e a capoeira das crianças estão fechadas, o dentista desmarcou a consulta do meu filho e sábado não vai ter o jogo do campeonato de futebol dele, a companhia aérea cancelou minha passagem para Madri, também não vai ter o show da Gal, a faculdade avisou que tampouco tem data para a próxima prova. As escolas já trabalham com a possibilidade de seguirem fechadas até maio.
O país inteiro fechou.
Nós também nos fechamos nesse novo arranjo doméstico porque eu ainda tenho que estudar, Gui (companheiro da jornalista) ainda tem que trabalhar e Gael, com oito anos, tem o cronograma da escola para cumprir. A professora tem nos orientado remotamente sobre o conteúdo de cada dia e nos vemos professores dos nossos filhos, às voltas com o neolítico e os verbos auxiliares. Não sei o que seria de nós sem o Google.
Anita, aos cinco anos, se encarrega de dar o toque de fim de mundo colocando a casa abaixo enquanto eu a mando deixar Gael terminar o compiti de italiano.
Passamos o dia de pijama. Vi uma vizinha receber o correio de luvas. Moro no quinto andar. Ninguém mais pega o mesmo elevador. Sobe um vizinho de cada vez, é o protocolo.
Fui ao mercado na quarta-feira. Na rua, as poucas pessoas usavam luvas cirúrgicas e, na falta de máscara, lenço ou cachecol cobrindo o nariz. Fila na porta, todos respeitando a orientação de manter distância uns dos outros, a entrada contingenciada, mais gente fora do que dentro do mercado. Cinco de cada vez.
Ninguém reclama.
Pela primeira vez em seis anos não sou a única com carrinho lá dentro. Os italianos, em geral, só compram o que podem carregar, mas agora estão fazendo dispensa e já faltam alguns produtos nas prateleiras. Um corredor para cada pessoa. Ninguém se esbarra, o alto-falante fica repetindo para respeitarmos a distância mínima. Na volta para casa, reparo o comércio fechado, os poucos cafés abertos espaçaram as mesas. Mas estão desertos.
Estamos todos isolados em casa.
Depois do anúncio da OMS decretando a pandemia, outros países começaram a adotar as mesmas medidas para deter o avanço do vírus que, por menos letal que seja, contamina tanto que mata muito. Na maioria dos casos, idosos e pessoas com imunidade baixa e doenças pregressas. Mas não só elas.
A flor no asfalto é a solidariedade. Não vejo, entre as pessoas de meu convívio, pânico de ficar doente ou medo pelas nossas crianças que, ao que parece, não são páreo para o coronavírus. Mas estamos todos cuidando de quem não tem defesas suficientes para ele. Eu cuido do morador de rua que dorme no frio, embaixo da marquise do meu prédio, das senhorinhas que cumprimento no mercado, do senhor da loja de molduras. E, aqui em Roma, essas pessoas viraram a prioridade de todos. Pensamos coletivamente numa onda de cuidado com o outro, esse desconhecido, que eu nunca tinha vivido antes. As crianças aprenderam a “tossir nos cotovelos” e o fazem até em casa. Foram ensinadas que são estratégicas para conter a ameaça.
É triste, mas também é bonito, sabem?
Como escreveu um amigo italiano, não há saída que não passe pela reconstrução paciente de uma resposta coletiva aos desafios. Talvez seja didático estarmos vivendo, todos, ao mesmo tempo, essa crise. Fica evidente que o engajamento de cada um de nós, pessoa a pessoa, é a melhor, se não a única, defesa diante a pandemia. Ninguém pode dar-se ao luxo de ser negligente. Acho que ficaremos com um aprendizado importante depois que tudo isso passar.
Também pela primeira vez testamos uma nova organização do trabalho. Ao mesmo tempo pessoas do mundo todo estão trabalhando de casa, empresas e repartições com carga horária e staff reduzidos. Talvez esteja sendo estabelecido um novo paradigma. Ainda não sabemos qual será o saldo, a história nos ensina que evolução nem sempre é progresso. Mas eu, que não posso evitar a esperança, acredito que tiraremos proveito desses dias de isolamento, quando não podemos sequer nos abraçar, tocar e beijar. E, apesar disso, acredito que esse vírus também possa desencubar a humanidade em nós.
Mas faremos esse balanço depois.
Por hora, lavem as mãos, ensinem as crianças, cuidem dos idosos e, se puderem, amigos, fiquem em casa. E mandem seus funcionários para casa. Não viajem. É preciso identificar e curar os que contraíram a doença antes que ela se espalhe. O vírus já está aí, no nosso Brasil, não o subestimem. Cobrem das autoridades, não acreditem em quem diz que é só uma gripe, – eu já fui essa pessoa – não é! Não paguem para ver: o preço é a vida dos mais frágeis entre nós. As teorias conspiratórias só distraem até que os médicos comecem a escolher quem, entre os necessitados, irão entubar. Até que morra a avó de um amiguinho dos nossos filhos. Até que o colega de trabalho safenado fique entre a vida e a morte numa UTI.
O momento não é de pânico, mas de cuidado e responsabilidade. E união e solidariedade. Estamos todos diante o mesmo desafio, meus caros, é preciso assumir esse compromisso.
Há um mês a China era longe; há três semanas, a Lombardia também era. Quando começou a quarentena eu também me revezava, junto com outras mães e pais, nos grupos de WhatsApp, entre o desespero de ter que encaixar as crianças, de repente, nos compromissos dos dias úteis e os memes – como nós, os italianos também reagem com bom humor às adversidades. Hoje, em Roma, já não podemos ignorar que o mundo diminuiu e que hoje somos todos vizinhos.
Desejo que meus conterrâneos não deem chance para a doença no calor de nossa terra.
Cuidem-se. Uns dos outros. Fiquem firmes. Sairemos melhores dessa.”
Juliana Monteiro, jornalista brasileira, mora no bairro de San Giovanni, de Roma, há seis anos e compartilhou o relato acima em suas redes sociais.
Fonte: Estado de Minas