A pesquisa analisou cerca de 800 mil notificações de violência contra mulheres feitas por serviços de saúde e 16,5 mil mortes associadas a elas no período de 2011 a 2016.
Desde 2011, os profissionais do SUS devem notificar ao ministério todos os casos de violência intencional praticada por terceiros ou pela própria vítima (automutilação e tentativa de suicídio), por meio do Sinan (Sistema Nacional de Agravos de Notificação).
Os pesquisadores cruzaram esses dados com os registros de morte que estão no SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), possibilitando traçar uma trajetória das mulheres vítimas de agressões e a sua morte, em consequência da violência.
“É a verdadeira crônica de uma morte anunciada. Temos a agressão, temos até o endereço da mulher e do agressor, sabemos que ela corre o risco de morrer, e no final da história, ela morre. Morte evitável, mas não estamos conseguindo atuar preventivamente”, diz a médica Fatima Marinho, uma das autoras do estudo.
O trabalho envolveu pesquisadores da USP, da Universidade Federal de Minas Gerais e da Universidade de Toronto, além do Ministério da Saúde e da Vital Strategies, um organização internacional que atua em estratégias de políticas de saúde pública.
Professora do Instituto de Estudos Avançados da USP, Marinho coordenou até o ano passado a base de dados do Ministério da Saúde. O estudo computa também mortes por doenças crônicas que a mulher desenvolveu a partir de episódios de violência, por exemplo, uma depressão que levou ao suicídio.
“Mesmo o diabetes pode ser desencadeado por depressão. Mulheres expostas à violência crônica, como a doméstica, adoecem muito mais, não conseguem se cuidar, têm um profundo desejo de morrer e deixar de sofrer uma tortura constante”, afirma Marinho.
Segundo o estudo, o risco de morte por diabetes em vítimas de violência é quatro vezes o do das mulheres sem notificação de violência. Jovens entre 15 e 29 anos tiveram 5,7 vezes mais chances de morrer de doenças cardíacas.
A análise foi dividida em dois períodos. No primeiro (2011-2013), foram computadas 2.036 mortes, em média 40 por semana, atribuídas à exposição direta ou indireta à violência física, psicológica, sexual, de repetição ou autoprovocada. O risco de morte foi calculado em 5,3 vezes o da população em geral.
No segundo período (2014-2016), foram 5.118 mortes, cem semanais, um risco de 8,3 vezes. “Temos um aumento enorme no período e isso continuou nos anos seguintes [cujos dados ainda não estão consolidados]”, diz Marinho.
As mulheres representaram 70% das 243.259 vítimas de violência que procuraram o SUS em 2016 para atendimento médico. A maioria das agressões (70%) ocorreu em casa. Em 28% dos casos, a violência era de repetição.
“O impacto da violência à saúde da mulher vai muito além das feridas, das cicatrizes, das fraturas, dos hematomas. Tem o impacto interno, subjetivo, na sua saúde física e mental que gera outras doenças”, afirma a socióloga Wânia Pasinato, especialista em violência contra as mulheres e consultora do Conselho Nacional do Ministério Público.
O estudo mostra que mulheres vítimas de violência tiveram 11 vezes mais riscos de cometer suicídio. Segundo ela, nas últimas duas décadas, vários países têm pesquisado essa temática, com conclusões parecidas com a desse novo estudo brasileiro.
“Nós já sabemos que isso acontece. Por que nunca fizemos nada para melhorar a situação dessas mulheres? E o que vamos fazer agora? Cadê as políticas públicas para olhar esse problema com a complexidade que ele tem que ser olhado?”, questiona.
Pasinato defende que os serviços públicos estejam mais bem preparados para identificar os sinais da violência contra mulher e interromper o processo de adoecimento. “Infelizmente, cada vez mais no Brasil a gente vê um movimento contrário.”
Para Daniel Cerqueira, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e coautor do Atlas da Violência, o estudo revela de maneira clara que um feminicídio, por exemplo, não ocorre em um momento de cólera, mas é resultado de um processo crônico de violência doméstica que dá muitos sinais antes de um crime ocorrer.
“Há determinados padrões que começam com violências psicológicas, xingamentos, depois passa para pequenas agressões, às vezes físicas, até chegar às agressões mais violentas. Muitas vezes, o ciclo volta com um suposto arrependimento do perpetuador e começa tudo de novo. É um processo crônico, gradual e evolucionário.”
Mulheres que sofreram violência física (63% dos casos notificados), e de repetição tiveram sete vezes mais chances de morte, seguida da violência sexual (5,7 vezes) e psicológica (5,4 vezes).
Segundo Cerqueira, o estudo chama a atenção ainda para a importância da prevenção secundária da violência. A primária tem a ver com causas mais gerais, sociais, e tenta atuar antes que os eventos aconteçam. A secundária é quando as agressões já estão acontecendo e o que pode ser feito para cessar a sua progressão.
“As mulheres já passaram pelo sistema de saúde, já se verificou que elas eram vítimas de violência doméstica e que têm risco, lá na frente, de serem mortas. Poderia ter havido intervenção do Estado. No entanto, nada foi feito e várias delas morreram.”
Na avaliação de Cerqueira, seria importante uma política integrada de prevenção à violência doméstica, que interligasse vários órgãos do estado.
“É preciso usar esses indicadores. Por exemplo, os da mulher que vai ao sistema de saúde buscar ajuda ou que procura delegacia e não é ouvida direito, é objeto de chacota e de expressões machistas. É preciso ouvir as vozes que já estão falando por meio do Estado e não são ouvidas.”
E como fazer diferente? Na sua opinião, no momento em que o sistema de saúde constata a violência doméstica vários outros órgãos do Estado teriam que ser avisados.
“A assistência social, para fazer acompanhamento, a própria polícia para programar rondas na região onde aquela mulher mora. Rondas periódicas geram um efeito de dissuasão, muitas vezes o marido agressor se abstém de cometer um ato violento.”
Segundo o estudo, o casamento ou a união consensual é um fator de risco para as mulheres jovens, entre 20 e 29 anos, vítimas de violência. Elas têm 14 vezes mais risco de morte do que uma mulher nessa faixa etária, com o mesmo estado civil, que não é agredida.
Wânia Pasinato, porém, vê com cautela a troca de informações dos serviços de saúde com as autoridades policiais porque, segundo ela, nem a polícia e nem a Justiça estão atuando de maneira efetiva para responsabilizar o agressor e proteger a mulher contra a violência doméstica.
“Em nenhum momento a notificação da violência à saúde, usada em estudos epidemiológicos, deve ser ferramenta de denúncia para a polícia. Isso significaria passar por cima da autonomia da mulher. Sabemos que o efeito é muito negativo. Hoje os profissionais de saúde já sentem medo em notificar a violência e isso pode piorar.”
Procurado, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não foi encontrado para comentar a pesquisa. Segundo sua assessoria, ele estava em área de difícil acesso de celular.
Fonte: Folha SP