A união do bolsonarismo com o centrão vem também favorecendo a pressão política sobre a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que as exigências na aprovação do uso emergencial de vacinas contra a covid-19 sejam afrouxadas, até mesmo por meio de Medida Provisória (MP). Parlamentares dessas alas vêm constrangendo técnicos da agência, defendendo principalmente a liberação da vacina russa Sputnik V. Na semana passada, o Congresso chegou inclusive a aprovar uma MP para acelerar o uso emergencial de vacinas em até cinco dias, caso tenham sido validados por autoridades internacionais.
A nova regra, no entanto, coloca em risco a avaliação técnica das vacinas. O presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, declarou que nos 22 anos da agência “pouquíssimas vezes houve necessidade de tamanha movimentação política. É necessário isso? Não é, porque no final o que define são os critérios técnicos”, contestou.
Amigo declarado do presidente Jair Bolsonaro, o presidente da Anvisa avaliou, contudo, na sexta-feira (5), que o trecho da MP que obriga a análise da vacina em cinco dias é “irreal”. E recomendou a Bolsonaro, que ainda precisa sancionar o texto, que a nova regra seja vetada. Do contrário, segundo Barra Torres, a medida “pode contrariar o interesse público”. A decisão marcará se o governo está ao lado da Anvisa ou do Congresso, que também tem apoio do Ministério da Saúde, numa nova batalha pela vacina.
Ataque à autonomia da Anvisa
Para o médico infectologista e ex-diretor da agência entre 1999 e 2002, Gonzalo Vecina, caso a MP seja aprovada em sua integralidade, ela será um ataque à autonomia da Anvisa. O professor na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e ex-secretário municipal de Saúde de São Paulo da gestão de Marta Suplicy (PT) cita como “grave a situação de pressão” sobre o órgão.
Em entrevista à Maria Teresa Cruz, do Jornal Brasil Atual, Vecina afirma que, ainda que seja enorme o interesse por vacinas diante da crise sanitária, é necessário avaliá-las, como todos os países civilizados fazem. “A Anvisa está fazendo um papel muito importante, e mais, a Anvisa não tem 22 anos, a função vigilância sanitária no Brasil existe desde 1819. Então não começou ontem, ela só foi transformada em uma agência em 1999. É fundamental ter vigilância sanitária para garantir a segurança e a proteção da saúde da população. É preciso entender isso”.
De acordo com o ex-diretor da agência, a pressão para que as exigências do órgão sejam relaxadas confirma também o histórico do Congresso para a liberação da fosfoetanolamina. Conhecida como pílula do câncer, o medicamento teve uso autorizado pelo Congresso, em 2016, e só foi barrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que questionou a falta de comprovação científica. “A Anvisa disse que esse medicamento não funcionava e o Congresso foi lá e fez uma lei, dizendo que medicamento funcionava”, relembra Vecina.
Em abril do ano passado, o próprio Bolsonaro quis novamente pressionar para que a pílula fosse liberada. “Foram fazer testes e eles mostraram que esse remédio era água benta, só fazia milagre. Não dá para curar as pessoas com milagre, tem que ser com técnica, com boa ciência”, destaca o especialista.
Lobby para a Sputnik V
Vecina também ressalta que a autorização por agências internacionais não é suficiente para aprovar o uso emergencial de uma vacina. A defesa do Congresso, em particular pela liberação da vacina russa, também chama atenção do especialista.
Reportagem do El País mostra que há um lobby político em prol da Sputnik nos bastidores de Brasília, encabeçado pelo ex-deputado federal do PSD e ex-governador do Distrito Federal, Rogério Rosso. Atualmente ele é diretor de Negócios Internacionais da empresa União Química, responsável pelo imunizante do Instituto Gamaleya.
A União Química afirma que 10 milhões de doses da Sputnik podem ser disponibilizadas ao Brasil e que aguarda o aval da Anvisa. O processo, contudo, já foi devolvido uma vez por falta de dados. Antes de se tornar dispensável, a agência também questionava a ausência de informações sobre a fase 3 dos testes no Brasil.
O imunizante já é usado pela Argentina, mas Vecina também pondera que faltam informações. Ele cita, por exemplo, os resultados publicados na revista médica The Lancet, que indicaram 91,6% de eficácia da Sputnik V no universo de 20 mil participantes do estudo. O ex-diretor questiona o andamento dos testes para os outros 20 mil participantes, que não tiveram os resultados divulgados. Para Vecina, é preciso ter cuidado com os dados para que o interesse pelas vacinas não alimente o interesse pelo lucro das empresas. “Eu não sou contra a vacina da Gamaleya, a Sputnik V, eu só acho que temos que ter mais informação, e essa informação deve ser digerida e entregue à população”, defende.
Fonte: Rede Brasil Atual