“Nosso pai lutou muito, foi um guerreiro, e sua luta nós vamos continuar”. Essa foi a mensagem de Borehá, Maitá e Mandeí ao pai e líder indígena Aruká Juma, que tinha entre 86 a 90 anos, e morreu de Covid-19, por volta das 9 horas desta quarta-feira (17). A morte por insuficiência respiratória aguda, decorrente da infecção, ocorreu no Hospital de Campanha Regina Pacis, na capital de Rondônia.
Antes de ser transferido à UTI do Hospital de Campanha, Aruká Juma recebeu no mês de janeiro o “tratamento precoce” da Covid-19 no Hospital Sentinela de Humaitá, no sul do Amazonas. Os remédios promovidos pelo governo do presidente Jair Bolsonaro são ineficazes para a doença, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). A medicação prescrita ao ancião, que era hipertenso, foi revelada à agência Amazônia Real pela Casa de Atendimento de Saúde Indígena (Casai) de Humaitá (AM), órgão do Ministério da Saúde.
“A Coiab e Apib avisaram que os povos indígenas de recente contato estavam em extremo risco. O último homem sobrevivente do povo Juma está morto. Novamente, o governo brasileiro se mostrou criminosamente omisso e incompetente. O governo assassinou Aruká”, lamentou, em dura nota (Leia a íntegra no fim da reportagem), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi).
Segundo a Coiab, a pandemia do novo coronavírus já atingiu 34.529 indígenas na Amazônia brasileira. Conforme o levantamento publicado no dia 11 de fevereiro, morreram da doença 783 pessoas de 107 povos. No Amazonas foram 8.674 casos e 252 óbitos de pessoas de 38 etnias diferentes.
A família de Aruká são os últimos sobreviventes do povo Juma, etnia do tronco linguístico Tupi Kagwahiva. Aos 15 anos, Aruká presenciou o maior massacre que seu povo sofreu ao defender o território da invasão de seringueiros e comerciantes de castanha na década de 1960. No final dos anos de 1990, o líder conseguiu a demarcação do território localizado no munucípio de Canutama, no sul do Amazonas.
Aruká Juma apresentou sintomas de Covid-19 junto de outros 12 familiares na primeira quinzena de janeiro na aldeia do território indígena. No dia 17 do mês passado, ele passou mal e foi encaminhado para o Hospital Sentinela, no município de Humaitá, vizinho de Canutama, iniciando uma série de internações e alta médica.
No dia 2 de fevereiro, Aruká Juma teve uma piora no quadro clínico do tratamento da Covid-19, foi entubado e precisou ser transferido, já que o Hospital Regional de Humaitá – o segundo que passou por internação – não tinha uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Uma mobilização de órgãos públicos estadual, federal e organizações de defesa dos povos indígenas foi realizada para salvar sua vida. Ele foi removido para o Hospital de Campanha em Porto Velho, capital de Rondônia.
Segundo o boletim médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, no dia 7 de fevereiro, Aruká apresentou uma melhora, pois respondia bem aos antibióticos para combater a infecção da pneumonia, foi desentubado e recebia ventilação mecânica.
A partir do dia 15, o quadro clínico do líder indígena “piorou consideravelmente”. Segundo o boletim, o “paciente teve uma piora no quadro infeccioso, choque séptico que indica infecção generalizada e que pode ocasionar falência de órgãos e pressão arterial perigosamente baixa”. Aruká Juma não resistiu às consequências da Covid-19.
Em todo o período de internações nos meses de janeiro e fevereiro, a agência Amazônia Real solicitou os boletins médicos sobre o estado de saúde de Aruká Juma e informações da prescrição dos medicamentos administrados no paciente.
Na terça-feira (16), a agência Amazônia Real recebeu informações de uma profissional da Casai Humaitá, pelo Whatsapp, descrevendo que o guerreiro Aruká Juma recebeu medicamentos não indicados para o tratamento de Covid-19 no Hospital Sentinela, de Humaitá. Segundo a profissional, na lista de medicamentos prescritos no tratamento constavam azitromicina, ivermectina, nitazoxanida e sulfato de zinco.
Esse remédios fazem parte do coquetel do “tratamento precoce” promovido pelo governo do presidente Jair Bolsonaro e que não são reconhecidos para paciente de Covid-19 pela OMS, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Procurado pela reportagem, o assessor do Conselho Distrital Indígena (Condisi), do Ministério da Saúde, Aurélio Tenharim, disse que quando esteve doente de Covid-19 foi medicado com o “tratamento precoce”, confirmando a administração dos remédios sem eficácia, inclusive no ancião Juma. “O mesmo medicamento que eu tomei, ele [Aruká Juma] tomou também. O médico prescreve aquilo lá [tratamento precoce]”, afirmou Aurélio.
As filhas de Aruká Juma, Borehá, Maitá e Mandeí afirmam que não foram informadas sobre o tratamento com medicamento não eficaz para a Covid-19 na assistência ao pai pelo Hospital Sentinela.
Ministro é investigado por omissão
No dia 11 de janeiro, o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, esteve em Manaus e recomendou publicamente o “tratamento precoce” no lançamento do Plano Estratégico de Enfrentamento à Covid-19 no Amazonas. Naquele momento, o Amazonas enfrentava o colapso no sistema de saúde com falta de leitos de UTI e até oxigênio nos hospitais.
“Nós não estamos mais discutindo se esse ou aquele profissional concorda. Os conselhos federais e regionais de saúde já se posicionaram. Os conselhos são a favor do tratamento precoce, do diagnóstico clínico. Eu conversei pessoalmente, por vídeo, com todos eles”, disse Pazuello. “O diagnóstico é do profissional médico. O tratamento é do profissional médico. E a orientação é precoce. E essa orientação é de todos os conselhos de medicina. A medicação, ela pode e deve começar antes desses exames complementares. Caso o exame, lá na frente, por alguma razão dê negativo, reduz a medicação e tá [sic] ótimo. Não vai matar ninguém, mas salvará no caso da Covid”, completou o ministro.
Pazuello está sendo investigado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por suposta omissão na crise sanitária do Amazonas. O ministro Ricardo Lewandowski, a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), autorizou na segunda-feira (15) que Polícia Federal faça as diligências no inquérito aberto para investigar o ministro.
O que dizem as autoridades
A reportagem da Amazônia Real procurou a Secretaria Municipal de Saúde de Humaitá, responsável pelo Hospital Sentinela e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, para que os órgãos comentassem sobre o “tratamento precoce” prescrito no atendimento ao indígena Aruká Juma. Eles não se manifestaram sobre o caso dos medicamentos.
A Sesai emitiu uma nota de pesar, por meio do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Porto Velho. “O Dsei tomou todas as providências possíveis para atender o paciente e permanece prestando assistência à família. (…) A Sesai e o Dsei Porto Velho manifestam profundo pesar pelo falecimento desse grande guerreiro e cacique e se solidarizam com amigos e familiares neste momento de luto”.
O funeral do guerreiro Aruká Juma
O sepultamento do guerreiro Aruká Juma estava previsto para ocorrer na noite desta quarta feira (17) na Aldeia Juma. Segundo o coordenador-regional CR Madeira da Fundação Nacional do Índio (Funai), Cláudio Rocha, várias lideranças foram convidadas para fazer uma homenagem ao líder na ponte, que fica na Vila do Assuã, na Transamazônica, antes do cortejo fúnebre seguir para o território indígena Juma. “É uma grande perda para a Funai, para os caciques em geral. Ele deu muita contribuição para os povos indígenas, estamos todos tristes e só temos a lamentar”, disse.
À reportagem, Mandeí Juma contou que todos os adornos e adereços que pertenciam ao guerreiro serão enterrados com ele. Antes de ser entubado no hospital, Aruká fez um pedido à filha: que gostaria de ser enterrado na aldeia onde ele havia construído a primeira maloca, local que foi enterrada a mãe dela, Mboreha.
A filha mais velha do líder, Borehá Juma, disse que daqui para frente pretende seguir os passos do pai. “Eu quero virar igual ele agora para lutar igual ao meu pai. Meu pai era um guerreiro mesmo. Ele era cacique, eu fui cacique e agora a linhagem acabou”, afirma ela.
Mandeí Juma afirma que agora o que fica são as lembranças e a saudade. “Queria abraçar ele, como ele falou, não queria perder a família dele”, diz.
Além das três filhas Juma, Aruká deixou 14 netos, bisnetos, e uma filha de um relacionamento com uma indígena Uru-Eu-Wau-Wau.
O luto pela morte de Amoim (avô)
A historiadora Ivaneide Bandeira Cardozo, da organização Kanindé, disse que o momento é crítico para a saúde indígena dos povos da Amazônia. Ela soube da morte de Aruká Juma no momento em que estava acompanhando a vacinação da segunda dose da vacina contra Covid-19 aos povos Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia. Segundo ela, os profissionais da vacinação precisaram de escolta para ingressar no território, pois pessoas não-indígenas estão impedindo o acesso à terra indígena.
“Vocês precisam entender a situação de saúde que está vivendo o povo indígena do Brasil e da Amazônia de intensa pressão, intensa invasão de suas terras, e o atendimento de saúde que é precário. Então, é muito sério e a gente precisa se unir e o mundo precisa saber o que está acontecendo com os povos Juma e Uru-Eu-Wau-Wau continuem vivos na Floresta Amazônica”.
O Ministério Público Federal de Rondônia divulgou uma nota lamentando o falecimento da liderança indígena Aruká Juma. “Na metade da década de 1960, o povo Juma quase foi extinto devido aos massacres que os demais parentes sofreram nas décadas anteriores por parte de seringueiros, madeireiros e pescadores no território, que fica margeado no rio Assuã, em Canutama (AM). Aruká era um dos sobreviventes da sua etnia. O indígena deixa três filhas, últimas pessoas da etnia Juma: Mandeí Juma, Maitá Juma e Boreha Juma”, disse.
O Condisi do Dsei Porto Velho também divulgou nota: “Lamentamos profundamente a morte do Senhor Aruká Juma. Reforçamos a importância de não se quebrar a regra do isolamento social neste momento. Este Conselho, responsável por acompanhar, planejar, avaliar, fiscalizar, supervisionar e deliberar sobre as ações relacionadas à saúde indígena no território de abrangência do DSEI, continua realizando divulgação junto às comunidades indígenas para não saírem das aldeias e evitarem receber visitas durante a pandemia de Covid-19. É fundamental a conscientização e responsabilidade de todos para juntos vencermos o coronavírus”, disse Ivanildo Tenharin, presidente do CONDISI/PVH.
A dura nota das organizações:
A Coiab, a Apib e o Opi divulgaram uma nota conjunta de pesar intitulada “A devastadora e irreparável morte de Aruká Juma”, que segue na íntegra:
“É desoladora a morte por complicações de Covid-19 do último homem do povo Juma, o guerreiro Amoim (avó) Aruká. O povo Juma sofreu inúmeros massacres ao longo de sua história. De 15 mil pessoas no início do século XX, foi reduzido a cinco pessoas em 2002. Um genocídio comprovado, mas nunca punido, que levou seu povo quase ao completo extermínio. O último massacre ocorreu em 1964 no rio Assuã, na bacia do rio Purus, perpetrado por comerciantes de Tapauá interessados pela sorva e castanha existente no território Juma. No massacre foram assassinadas mais de 60 pessoas, apenas sete sobreviveram. Integrantes do grupo de extermínio contratados pelos comerciantes relataram atirar nos Juma como se atirassem em macacos. Os corpos indígenas foram vistos por ribeirinhos da região, após o massacre, servindo de comida para porcos do mato, inúmeras cabeças decapitadas espalhadas pelo chão da floresta. O mandante do crime, ciente do ocorrido, se vangloriou por ter sido o responsável de livrar “Tapauá dessas bestas ferozes”. Essa história jamais deve ser esquecida. Aruká, um dos sobreviventes, continuou sua luta de resistência, vendo seu povo beirar o desaparecimento. Lutou pela demarcação do território Juma, que foi homologado apenas em 2004, a Terra Indígena (TI) Juma. Os sobreviventes Juma, apesar do risco de desaparecimento, viram seu povo crescer novamente na década de 2000, por meio de casamentos com indígenas Uru Eu Wau Wau, povo indígena também de língua Tupi-Kagwahiva. Por estarem sujeitos a uma imensa vulnerabilidade e risco de desaparecimento, o povo Juma é considerado de recente contato e consta entre os povos a serem protegidos por Barreiras Sanitárias, cuja instalação foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal a pedido dos povos indígenas, de representantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), por meio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 709 (ADPF 709). O pedido foi feito em julho de 2020 e o ministro Luís Roberto Barroso deferiu. Porém, diante das dificuldades alegadas pelo governo Bolsonaro, o ministro deu o prazo de até setembro de 2020 para que as Barreiras na TI Juma fossem instaladas. Em agosto de 2020 o governo Bolsonaro disse que iria fazer a Barreira no rio Assuã, na Rebio Tufari, fora da TI Juma, seria uma Barreira Sanitária composta pela Polícia Militar e DSEI-Humaitá. No entanto, em dezembro do mesmo ano, afirmou que faria apenas um posto de controle de acesso na BR 230 – Rodovia Transamazônica, mas não comprovou o seu efetivo funcionamento. Se o posto de acesso funcionou ou não, como vinha representantes da Coiab e Apib cobrando há meses nas Salas de Situação com o governo Bolsonaro, já não importa mais para Aruká. O que se sabe, comprovadamente, é que ele agora está morto. É tristemente com seus mortos que os povos indígenas comprovam seus apelos. A Coiab e Apib avisaram que os povos indígenas de recente contato estavam em extremo risco. O último homem sobrevivente do povo Juma está morto. Novamente, o governo brasileiro se mostrou criminosamente omisso e incompetente. O governo assassinou Aruká. Assim como assassinou seus antepassados, é uma perda indígena devastadora e irreparável”.
Fonte: Brasil de Fato