Um assessor do Palácio do Planalto distorceu os números de uma modelagem física e matemática para sustentar um artigo que contraindicou o isolamento social no auge da pandemia do novo coronavírus. O trabalho, que não chegou a ser divulgado oficialmente pelo governo, foi descoberto pelo Brasil de Fato e duramente criticado por pesquisadores.
O estudo foi produzido por Mauricio Pazini Brandão, militar da Força Aérea Brasileira e assessor da Secretaria-Geral da Presidência da República no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Engenheiro aeronáutico, ele não tem nenhuma produção científica ou experiência prévia em temas correlatos à pandemia.
Entre as falhas graves e problemas metodológicos apontadas por especialistas em epidemiologia ouvidos pela reportagem, estão o fato de Brandão não levar em conta o tempo de duração dos lockdowns e de ignorar a taxa de adesão da população às medidas de isolamento social, mensurada pela taxa de mobilidade. Acadêmicos foram taxativos ao afirmar que a conclusão do militar não encontra respaldo científico.
O artigo foi divulgado com menção à Secretaria de Estudos Estratégicos, órgão diretamente ligado à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE-PR). O CEP (endereço) apontado no arquivo é da Praça dos Três Poderes, onde fica o Palácio do Planalto.
Procurada pela reportagem, a Presidência disse não ter relação com o texto produzido por Brandão. “O conteúdo do artigo é de responsabilidade exclusiva do autor, não tendo sido objeto de endosso institucional por parte da SAE-PR”, afirmou o governo federal. A íntegra da resposta está ao final deste texto.
O trabalho de Brandão dá verniz científico à tese defendida exaustivamente pelo presidente Jair Bolsonaro de que as medidas de distanciamento não deveriam ser adotadas no país. A peça foi produzida no auge da pandemia. Foi publicada em abril de 2021.
Em publicação feita em sua conta profissional no LinkedIn, o militar afirmou que o estudo contribui para “repensarmos a libertação do Brasil”. No comentário, ele disse que a pesquisa fornece “fortes evidências” de que “a melhor estratégia é equilibrar as intervenções de Saúde e Economia”.
“Na prática, isso implica que medidas mais restritivas como lockdowns, ordens de permanência em casa e fechamento de negócios devem ser substituídas por medidas menos restritivas como diretrizes inteligentes de distanciamento social, controle de viagens, proibição de grandes reuniões e isolamento de casos infectados”, escreveu.
Desde março de 2020, a Organização Mundial da Saúde reforça que as medidas de isolamento social são a melhor alternativa pra conter a propagação do vírus. O órgão cobra dos governos a garantia da renda e do bem-estar da população. Leia o posicionamento da OMS sobre o tema.
O discurso que reforça uma suposta oposição entre a preservação da saúde e da economia no combate à pandemia foi utilizado por Bolsonaro inúmeras vezes desde o início da crise sanitária. Em fala na Assembleia Geral da ONU, nessa quinta-feira (23), o presidente voltou a repetir o argumento. “Sempre defendi combater o vírus e o desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade”, afirmou.
A produção do estudo aponta que o aconselhamento de viés negacionista a Bolsonaro também foi promovido por servidores do Palácio do Planalto em cargos comissionados, e não somente por integrantes de um suposto “gabinete paralelo”, como os médicos Nise Yamaguchi, Paolo Zanotto e Luciano Dias Azevedo, e o deputado Osmar Terra (MDB-RS).
O caso mostra ainda o papel de mais um militar das Forças Armadas na elaboração da estratégia do governo federal para o combate à pandemia, que já levou à morte de mais de 600 mil pessoas. Brandão iniciou sua trajetória no governo federal como secretário do ministro Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia e Inovação). Em outubro de 2020, foi realocado para o Palácio do Planalto.
O Brasil de Fato enviou o estudo de Brandão a acadêmicos e especialistas de diferentes campos de conhecimento. Segundo eles, a conclusão do estudo, de que medidas restritivas devem ser evitadas, não encontra respaldo científico.
A reportagem ouviu definições como “fraude”, “distorção” e “maluquice”. Os pesquisadores citaram estudos que comprovam a eficácia do distanciamento social a partir de projeções matemáticas publicados nas plataformas internacionais de artigos científicos The Lancet (acesse a íntegra) e The Science Magazine (acesse a íntegra).
Os especialistas apontaram que a modelagem utilizada desconsidera fatores fundamentais para projeções de doença infecciosa.
O coordenador da Rede Análise Covid-19, Isaac Schrarstzhaupt, afirmou que o estudo desconsidera a adesão da população ao lockdown e seu tempo de duração. “[O estudo] tem o mesmo erro básico de premissa que todos os outros [que questionam o isolamento. Considera decretos ao invés de considerar aderência aos mesmos”.
“É lógico e físico que as pessoas são os vetores. As pessoas, entrando em contato com outras pessoas, acabam transmitindo. Então, se a gente evitar o contato de pessoas com pessoas a gente começa a baixar a taxa de contagio”, disse.
“Só que se eu fizer um lockdown na sexta-feira e esse lockdown acabar já na segunda-feira, as pessoas que pegaram o vírus na sexta vão continuar a transmitir depois do fim do lockdown. Infelizmente, elas vão entrar em contato com pessoas na na sua própria casa e ainda vão transmitir. As pessoas que pegarem na segunda rodada ainda pode ser que transmitam para mais algumas. Só depois é que começa a ter uma redução efetiva. Por isso que se fecha tudo. Para evitar a mobilidade. Pessoas não-moveis não transmitem vírus para outras pessoas.”
Schrarstzhaupt apontou também que a suspensão de determinadas atividades não impede a disseminação do vírus: “Se a gente fizer um um fechamento que fecha algumas atividades, mas não se estende à mobilidade das pessoas, as pessoas continuam entrando em contato umas com as outras, em situações de risco. Isso acontece principalmente em locais fechados, com baixa ventilação. Por issso, a gente continua tendo transmissão”.
Mais de um acadêmico ouvido pela reportagem mencionou a pesquisa feita com base nos dados do Ministério da Saúde pelo engenheiro químico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Eduardo Lima. O acadêmico da instituição fluminense verificou que há uma tendência de diminuição do número de mortes pela covid-19 depois da adoção de medidas restritivas à circulação de pessoas.
De acordo com o professor, os estudos têm indicado que a adoção de estratégias de isolamento social surtem efeito, em média, de 10 a 14 dias, após o início da medida – mesmo período de incubação do vírus. Ao analisar os dados oficiais de óbitos por milhão de habitantes, Lima concluiu que os resultados mostram uma tendência mais constante de achatamento da curva após a decretação das medidas restritivas.
“Os casos vinham em uma crescente exponencial, mas o gráfico mostra que isso desacelerou, o que é a constatação científica e aferida por números de que o isolamento é eficaz”, disse.
Também chamou a atenção dos pesquisadores consultados o fato de o militar não ter nenhuma experiência prévia em epidemiologia ou infectologia. Eles citaram que o texto foi publicado em revista desconhecida, ligada a outros campos do conhecimento.
A reportagem entrou em contato com a Springer, plataforma na qual o texto foi divulgado, questionando os critérios utilizados para publicação do texto de Brandão. O artigo consta em uma seção específica para debates sobre dinâmicas não-lineares (sistema determinista para previsão de fenômenos futuros, baseado na Teoria do Caos).
Em nota, uma porta-voz da empresa disse que o artigo foi revisado por pares e que trata-se de “um estudo de modelagem teórica publicado na Nonlinear Dynamics, um periódico cujo escopo abrange pesquisas originais no campo de todos os fenômenos dinâmicos não lineares associados a sistemas mecânicos, estruturais, civis, aeronáuticos, oceânicos, elétricos e de controle”.
A Springer não deixou claro se endossa a modelagem utilizada por Brandão para analisar a efetividade dos lockdowns contra a covid-19. A plataforma afirmou que não comenta especificidades da revisão dos artigos.
“Os artigos submetidos a esta revista (incluindo este) são revisados por pares. Por razões de confidencialidade, não comentamos sobre a história editorial ou as especificidades do processo de revisão de artigos individuais, mas de forma mais geral, os manuscritos submetidos à revista são enviados para revisão formal por pares por editores associados, que então tomam uma decisão com a ajuda de o conselho dos revisores.”
ÍNTEGRA DAS RESPOSTAS DO PALÁCIO DO PLANALTO
Na quarta-feira (22), o Brasil de Fato enviou 5 perguntas sobre o caso à Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência. As respostas foram remetidas à reportagem na manhã desta quinta (23). Leia a íntegra:
1) O artigo de Mauricio Pazini Brandão foi uma produção institucional da Secretaria de Estudos Estratégicos?
Não. O conteúdo do artigo é de responsabilidade exclusiva do autor, não tendo sido objeto de endosso institucional por parte da SAE-PR.
2) O artigo foi utilizado pela Presidência da República ou por qualquer outro órgão do governo federal para basear ações e políticas públicas na pandemia do novo coronavírus?
Não. O artigo não tramitou na SAE-PR e, portanto, também não foi encaminhado por esta a qualquer outro órgão ou entidade da administração pública federal. Trata-se de trabalho científico publicado em revista especializada. Cabe ressaltar que, depois de publicado, o artigo passa a ser de acesso público.
3) O estudo foi produzido, apresentado ou tratado no âmbito da Secretaria de Estudos Estratégicos ou qualquer outro órgão do governo federal?
Não. Vide resposta anterior.
4) A SEE autorizou a publicação do artigo com a assinatura da Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência da República?
O artigo não contém a assinatura da SAE-PR. A afiliação do autor à SAE-PR não implica automaticamente em endosso pela SAE-PR.
5) O assessor ou Secretaria de Estudos Estratégicos ainda concordam ou já concordaram com a conclusão do artigo, de que medidas restritivas deveriam ser evitadas como estratégia de combate à pandemia do novo coronavírus?
Não compete à SAE-PR emitir parecer sobre o tema. No âmbito do governo federal, compete ao Ministério da Saúde a análise e a formulação de estratégias relacionadas à gestão da pandemia COVID19. Com relação à opinião do autor, por tratar-se de produção científica independente, sugere-se contatá-lo.
Fonte: Brasil de Fato | Brasília (DF)